Constitucionalismo Digital: contradições de um conceito impreciso

AutorJane Reis Gonçalves Pereira, Clara Iglesias Keller
CargoProfessora Associada de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutora em Direito Público pela UERJ. Mestre em Direito Constitucional e Teoria do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Juíza Federal. E-mail: janereisuerj@outlook.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9203-5...
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N.4, 2022, p.2648-2689.
Jane Reis Gonçalves Pereira e Clara Iglesias Keller
DOI: 10.1590/2179-8966/2022/70887 | ISSN: 2179-8966
Constitucionalismo Digital: contradições de um conceito
impreciso
Digital Constitutionalism: contradictions of a loose concept
Jane Reis Gonçalves Pereira1
1 Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail:
janereisuerj@outlook.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9203-5328.
Clara Iglesias Keller2
2 Wissenschaftszentrum Berlin für Sozialforschung, Berlim, Alemanha. E-mail:
clara.keller@wzb.eu. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6454-2616.
Artigo recebido em 22/10/2022 e aceito em 23/10/2022.
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N.4, 2022, p.2648-2689.
Jane Reis Gonçalves Pereira e Clara Iglesias Keller
DOI: 10.1590/2179-8966/2022/70887 | ISSN: 2179-8966
Resumo
O presente artigo mapeia os usos da expressão constitucionalismo digital, empregada nas
discussões recentes de regulação de tecnologias digitais e, em especial, plataformas de
Internet. Nosso objetivo principal é indicar as contradições e riscos colocados na dilatação
do termo “constitucionalismo para englobar os fenômenos normativos que hoje correm
sob o rótulo. À luz da compreensão do constitucionalismo tradicional como fenômeno
político e institucional, são identificadas as teorias que precedem o constitucionalismo
digital como formulações contemporâneas que visam explicar as mudanças no
funcionamento dos poderes e sistemas normativos que ultrapassam ou sobrepõem o
estado-nação e seus limites territoriais (i.e., pluralismo constitucional, constitucionalismo
societal e constitucionalismo global). A partir das críticas da literatura a essa matriz
teórica, o constitucionalismo digital é problematizado como termo epistemicamente
prejudicado pela diversidade de aplicações e pelo po tencial de legitimação de
concentração de poderes privados.
Palavras-chave: Constitucionalismo digital; Regulação de plataformas; Internet;
Constitucionalismo societal; Pluralismo constitucional; Constitucionalismo global.
Abstract
This paper maps the uses of the expression digital constitutionalism, as employed in
recent debates about digital technologies regulation (in particular, digital platforms). Our
goal is to highlight discrepancies and risks implied in the dilatation of the term
"constitutionalism" to encompass the normative phenomena that run under this label. In
light of the understanding of traditional constitutionalism as a political and institutional
phenomenon, we identify the theories that precede digital constitutionalism as
contemporary formulations aimed at explaining changes in the functioning of powers and
normative systems that transcend or o verlap the nation-state and its territorial
boundaries (i.e., constitutional pluralism, societal constitutionalism, and global
constitutionalism). Based on the literature's criticism of this theoretical matrix, digital
constitutionalism is problematized as a term epistemically impaired by the diversity of
applications and the potential to legitimize concentrations of private powers.
Keywords: digital constitutionalism; platform regulation; Internet; societal
constitutionalism; legal pluralism; global constitutionalism.
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N.4, 2022, p.2648-2689.
Jane Reis Gonçalves Pereira e Clara Iglesias Keller
DOI: 10.1590/2179-8966/2022/70887 | ISSN: 2179-8966
Introdução
Embora gestada como um sistema e uma ideologia de organização da esfera pública
estatal, a ideia de constitucionalismo tem assumido centralidade na teorização sobre as
manifestações emergentes de poderes internacionais e privados. As transformações das
últimas décadas, tanto no plano do exercício dos poderes estatais progressivamente
influenciados pela ordem transnacional , quanto na ampliação e fortalecimento dos
poderes privados em escala global, impulsionaram um esforço de compreensão e
conceituação que parece longe de alcançar uniformidade.
Diversas formulações contemporâneas empregam os termos constituição e
constitucionalismo para explicar as m udanças no funcionamento dos poderes e os
sistemas normativos que ultrapassam ou sobrepõem o estado-nação e seus limites
territoriais. São exemplos dessa tendência as noções de pluralismo constitucional,
constitucionalismo societal, constitucionalismo global, constitucionalismo transnacional
e constitucionalismo multinível. É nessa paisagem de disputa conceitual e multiplicação
de teorias que se insere a expressão constitucionalismo digital, usada nos últimos tempos,
sem consenso ou coesão, para descrever diversos fenômenos e práticas jurídicas
relacionadas à proteção de direitos no âmbito de tecnologias digitais, e, em especial, na
Internet.
Como referência dos processos de digitalização da informação, a Internet inspira
releituras das relações políticas e sociais desde sua expansão para o uso civil, na década
de 1990. Ao mesmo tempo em que são diagnosticadas substanciais alterações da equação
dos poderes públicos e privados deflagradas por um novo contexto tecnológico, as
demandas por organização política e aplicação do direito são influenciadas por categorias
e conceitos clássicos, forjados pela teoria política moderna. São invocados, por exemplo,
novos pactos deliberativos (BARLOW, 1996), o reconhecimento de uma esfera pública
digital (DE BLASIO et al, 2020; HELDT, 2020; PAPACHARISSI, 2008), bem como a aplicação
dos princípios associados ao estado de direito (RISCH, 2018; REED; MURRAY, 2018, p. 200-
230; SUZOR, 2018).
Na confluência dos dois fenômenos constitucionalismo e digitalização ,
despontam as diversas teorias que têm empregado, com cada vez mais frequência, a
expressão “constitucionalismo digital”. Apesar da reivindicação de um constitucionalismo
digital transitar nos debates sobre a Internet desde o início da década de 2000, a

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