Constitucionalismo Haitiano e a Invenção dos Direitos Humanos/Haitian Constitutionalism and the Invention of Human Rights.

AutorQueiroz, Marcos

Introdução (1)

A história da modernidade pode ser divida em antes e depois de 1804. No dia primeiro de janeiro deste ano, na cidade de Gonaïves, Jean Jacques Dessalines, ao lado de seus generais e perante a população local, declarava a independência do Haiti. Depois de treze anos de conflitos, da imposição de derrotas ao imperialismo francês, espanhol e inglês e do rechaço armado à tentativa de genocídio perpetrada pelas tropas de Napoleão Bonaparte, os haitianos fundavam o primeiro e único estado forjado a partir de uma revolução de escravizados. A Declaração de Independência, proferida por Dessalines, era o ato final desse processo. Em uma perspectiva de longa duração, trava-se da bifurcação de dois mundos.

Às vésperas da insurgência, 1791, a colônia em São Domingos estava no centro da acumulação capitalista. Ela era líder na produção de café (metade da produção mundial) e açúcar (produzindo mais que Brasil, Cuba e Jamaica combinados). Expressava, assim, a geopolítica da época, em que 25 milhões de franceses dependiam da economia colonial e 15% dos mil membros da Assembleia Nacional Francesa tinham propriedades nas Antilhas (DUBOIS, 2004; FICK, 1990; JAMES, 2007). Riqueza que embalava os ideais liberais proferidos pela burguesia francesa pelas cidades de Paris, Bordeaux, Nantes e Lyon. Riqueza produzida sobre a mais pura, desprezível e cruel violência, em que milhões de africanos e africanas foram raptados das suas terras para trabalhar até a morte, pois o tráfico negreiro era mais lucrativo do que a vida dos próprios escravizados (ARMITAGE e GAFFIELD, 2016). Isto é, valia mais a pena raptar massivamente africanos do outro lado do Atlântico do que prover condições básicas de sobrevivência dos trabalhadores na ilha. Isto fazia de São Domingos o maior porto negreiro do momento. O horror que era expresso na própria demografia da colônia: a cada 10 escravos negros, havia 1 colono livre, seja grande proprietário, pequeno burguês ou da "ralé" branca. A estratificação social era expressa na hierarquia racial: brancos; homens livres de cor e escravizados (DUBOIS, 2004).

Ao menos para a grande maioria dos haitianos, 1804 é o fim desse sistema. Contra o assédio imperialista e as tentativas de restauração da plantation por parte das elites internas, a população do país irá montar um vigoroso sistema de apropriação coletiva do território ao longo do século XIX, garantindo sua soberania em um mundo no qual o colonialismo era a norma. (2) Porém, diante da derrota na mais produtiva colônia das Américas, colonialismo, plantation e escravidão tiveram que se readaptar para sobreviver. Na esteira da Independência estadunidense e no meio do caminho para as independências latino-americanas, a Revolução Haitiana marca uma transformação em larga na história dos impérios, sendo ponto chave de emergência do segundo imperialismo: aquele que encerra as possessões nas Américas e o tráfico no Atlântico e inicia a exploração territorial e populacional em larga escala na África e na Ásia. A compra do largo território de Louisiana em 1803 pelos EUA é só um dos exemplos dessa mudança de estratégia da França e da Inglaterra sobre o continente americano (HARRISS, 2003).

A plantation também deveria ser reformulada. Após a Revolução Haitiana, o sul dos EUA, Cuba e Brasil são os seus novos laboratórios. Neles, ela passa por um processo de hiperespecialização, adequando-se às novas exigências do livre comércio capitalista, bem como se adapta aos coros de liberdade que começam a fechar o cerco sobre o tráfico negreiro (PARRON, 2015). São os primórdios da "segunda escravidão", momento no qual a instituição, momentaneamente contestada, retomará folego nas três referidas regiões, conjugando o desenvolvimento das trocas econômicas com a expansão da mão de obra escravizada. Liberalismo e escravismo não eram pares antagônicos, mas núcleos complementares da mesma economia política (BOSI, 1992; MARQUESE e SALLES, 2016). Neste contexto, por todo o Atlântico, formula-se uma arquitetura jurídica destinada a evitar a reprodução do Haiti em outros territórios. As noções de soberania, cidadania, propriedade, liberdade e igualdade serão definidas à luz dos eventos de São Domingos, bem como serão recrudescidas as táticas de controle social sobre a população negra. O medo da Revolução Haitiana passa a ser o negativo constitutivo da normatividade estatal ao longo do XIX (DUARTE, 2011; QUEIROZ, 2017), criando cativeiros jurídicos para a população negra, tanto na escravidão, como no pós-abolição (AZEVEDO, 2008; CHALHOUB, 1988; BRITO, 2016).

O contra-ataque antirrevolucionário estava montado. Por outro lado, a linguagem emanada pelo Haiti enfatiza outra geografia das lutas por liberação. Primeiramente, a Revolução Haitiana pode ser lida como a primeira das revoluções latino-americanas, ao ser constituída por um complexo de questões que marcarão a formação social dos demais países da região (como a grande presença de população negra e mestiça; o entrelaçamento entre forças militares e políticas na resolução dos conflitos internos; e a persistência da economia dependente) (ARMITAGE e GAFFIELD, 2016; GHACHEM, 2016). Por outro lado, ao ser forjada pela luta de uma população em sua maioria africana, que expulsou os colonizadores europeus do território, ela também pode ser entendida como percursora das guerras de descolonização da África no século XX, nas quais os efeitos globais do colonialismo era peça central (DUBOIS, 2004). Ademais, para os povos subalternos, desde o seu desfecho vitorioso até o mundo contemporâneo, a Revolução Haitiana foi um símbolo de resistência e de superação da opressão, insuflando movimentos políticos, estéticos e literários ao redor do mundo (PAST, 2004; QUEIROZ, 2018).

O sentido universal da Revolução Haitiana e de 1804 como divisor de águas ilumina o que estava em jogo na aurora do constitucionalismo (BUCK-MORSS, 2011; DUARTE e QUEIROZ, 2016). No momento em que surgem as noções básicas das Constituições modernas, como cidadania, soberania, representação política, propriedade, liberdade e igualdade, a escravidão era a grande instituição constituidora de sentidos do mundo atlântico (PARRON, no prelo; QUEIROZ, 2017). Como um instrumento óptico corretivo, o Haiti nos alerta sobre o que estava em jogo e era central, chama a atenção para aquilo que não queremos ver na história constitucional, retirando da penumbra o que foi silenciado.

Diante desse quadro, o artigo procura trabalhar aspectos centrais do constitucionalismo haitiano pós-revolucionário, desenvolvido entre 1801 e 1816. À luz da luta revolucionária dos haitianos por autodeterminação, os textos jurídicos do Haiti fornecem um arranjo conceitual alternativo para o direito constitucional moderno. A análise será desenvolvida em diálogo com o pensamento negro, o qual redimensiona aspectos marginalizados ou apagados pela teoria política hegemônica. Na abordagem, são desenvolvidos seis elementos articulados pela práxis constitucional do Haiti: direitos universais do negro; materialidade da escravidão; cidadania diaspórica; propriedade abolicionista; princípio do solo livre; e nação quilombo.

No entanto, antes de adentrar na análise, são importantes algumas considerações sobre a relação entre constitucionalismo e imaginação social.

  1. Constituição, nação e comunidades imaginadas

    No seu clássico Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo (2016), Benedict Anderson propõe pensar a nação como uma comunidade política imaginada como inerentemente limitada e soberana. Ela seria imaginada porque "ainda que os membros da nação mais pequena não conhecerão jamais a maioria de seus compatriotas, não serão vistos nem ouvirão sequer falar deles, no entanto, na mente de cada um vive a imagem de sua comunhão" (ANDERSON, 2016, p. 23). No seu argumento, a nação é uma espécie de obscurantismo trazido pelo iluminismo a substituir velhas metafísicas, como as religiosas ou das antigas dinastias. Ela é possibilitada pela interrelação entre capitalismo e imprensa e por uma mudança na temporalidade, da qual surge uma divisão entre passado e presente, tornando possível falar de uma antiguidade e do tempo presente. Portanto, há a quebra do tempo messiânico (simultaneidade entre passado e futuro em um presente instantâneo) diante da emergência do tempo da modernidade, marcado pela simultaneidade transversal: tudo se passa e se vive em todas as partes. O periódico é a grande expressão desse fenômeno, em que os eventos são compartilhados o tempo todo nas mais diversas regiões. Da mesma forma, a emergência do romance cria um outro tipo de narrativa em relação ao tempo, baseado nas noções de contemporâneo, cotidiano, tempo presente. Numa relação de identidade e empatia com o leitor, o romance fale de uma humanidade comum, um nós particular. Há a sincronização e fundição do tempo da novela com o tempo exterior (ANDERSON, 2016).

    Diante dessas transformações, a nação e o nacionalismo são artefatos culturais de uma classe específica que substituem outras imaginações comunitárias anteriores. Ela é fruto de processos pragmáticos de certos agentes e grupos sociais e não somente de uma imposição pura e simples. Assim, está atrelada ao uso contextual das línguas vernáculas (disseminado pela criação e expansão de mercados consumidores e pela reprodutibilidade capitalista da imprensa), à montagem de burocracias estatais e à formulação de relatos históricos atrelados a disputas por soberania política. Neste sentido, ela é materialmente construída e disputada e socialmente imaginada, dependendo de apetrechos específicos que mediam e informam os sentidos comuns. Assim, agentes institucionais, intelectuais, literatos, lideranças políticas, representações estéticas, historiografia e museus ajudam a moldar a percepção individual e coletiva dos habitantes de um determinado território no que se refere à identidade nacional. Assim, a despeito da desigualdade e exploração de um setor sobre o outro...

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