Constitucionalismo Haitiano e a Invenção dos Direitos Humanos

AutorMarcos Vinícius Lustosa Queiroz
CargoInstituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa e Universidade de Brasília ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3644-7595. E-mail: marcosvlq@gmail.com
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N.04, 2022, p. 2774-2814.
Marcos Queiroz
DOI: 10.1590/2179-8966/2022/70815| ISSN: 2179-8966
Constitucionalismo Haitiano e a Invenção dos Direitos
Humanos
Haitian Constitutionalism and the Invention of Human Rights
Marcos Queiroz1
1 Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, Distrito Federal, Brasília,
Brasil. E-mail: marcosvlq@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3644-7595.
Artigo recebido em 18/10/2022 e aceito em 23/10/2022.
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N.04, 2022, p. 2774-2814.
Marcos Queiroz
DOI: 10.1590/2179-8966/2022/70815| ISSN: 2179-8966
Resumo
Por meio da análise de trechos das constituições do Haiti da primeira metade do século
XIX, o artigo investiga as características dos direitos humanos no constitucionalismo
haitiano pós-revolucionário. Dessa análise, um arranjo conceitual alternativo é ext raído
para pensar o conteúdo dos direitos fundamentais e da ordem constitucional moderna.
Este arranjo é expresso em cinco conceitos: direitos universais do negro; materialidade
da escravidão; cidadania diaspórica; propriedade abolicionista; princípio do solo livre; e
nação quilombo. A análise é realizada em diálogo com o pensamento de intelectuais
negros e negras. Conclui-se que a poética constitucional haitiana opera uma crítica às
narrativas hegemônicas sobre a “invenção dos direitos humanos” e, ao mesmo tempo,
fornece um imaginário moral mais amplo e plural do constitucionalismo, especialmente
por lidar decididamente com o legado da escravidão, do colonialismo e do racismo.
Palavras-chave: Revolução Haitiana; Constitucionalismo; Direitos humanos; Racismo;
Escravidão.
Abstract
Through the analysis of excerpts from the Haitian constitutions of the first half of the 19th
century, the article investigates the characteristics of human rights in post-revolutionary
Haitian constitutionalism. From this analysis, an alternative conceptual arrangement is
extracted to think about the content of fundamental rights and the modern constitutional
order. This conceptual arrangement is expressed in five concepts: universal Black rights;
materiality of slavery; diasporic citizenship; abolitionist property; free soil principle; and
quilombo nation. The analysis is carried out in dialogue with the thought of Black
intellectuals. It is concluded that the Haitian constitutional poetics operates a critique of
the hegemonic narratives about the “invention of human rights” and, at the same time,
provides a broader and plural moral imaginary for constitutionalism, especially for dealing
decisively with the legacy of slavery, colonialism and racism.
Keywords: Haitian Revolution; Constitutionalism; Human rights; Racism; Slavery.
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Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 13, N.04, 2022, p. 2774-2814.
Marcos Queiroz
DOI: 10.1590/2179-8966/2022/70815| ISSN: 2179-8966
Introdução
1
A história da modernidade pode ser divida em antes e depois de 1804. No dia primeiro de
janeiro deste ano, na cidade de Gonaïves, Jean Jacques Dessalines, ao lado de seus
generais e perante a população local, declarava a independência do Haiti. Depois de treze
anos de conflitos, da imposição de derrotas ao imperialismo francês, espanhol e inglês e
do rechaço armado à tentativa de genocídio perpetrada pelas tropas de Napoleão
Bonaparte, os haitianos fundavam o primeiro e único estado forjado a partir de uma
revolução de escravizados. A Declaração de Independência, proferida por Dessalines, era
o ato final desse processo. Em uma perspectiva de longa duração, trava-se da bifurcação
de dois mundos.
Às vésperas da insurgência, 1791, a colônia em São Domingos estava no centro
da acumulação capitalista. Ela era líder na produção de café (metade da produção
mundial) e açúcar (produzindo mais que Brasil, Cuba e Jamaica combinados). Expressava,
assim, a geopolítica da época, em que 25 milhões de franceses dependiam da economia
colonial e 15% dos mil membros da Assembleia Nacional Francesa tinham propriedades
nas Antilhas (DUBOIS, 2004; FICK, 1990; JAMES, 2007). Riqueza que embalava os ideais
liberais proferidos pela burguesia francesa pelas cidades de Paris, Bordeaux, Nantes e
Lyon. Riqueza produzida sobre a mais pura, desprezível e cruel violência, em que milhões
de africanos e africanas foram raptados das suas terras para trabalhar até a morte, pois o
tráfico negreiro era mais lucrativo do que a vida dos próprios escravizados (ARMITAGE e
GAFFIELD, 2016). Isto é, valia mais a pena raptar massivamente africanos do outro lado
do Atlântico do que prover condições básicas de sobrevivência dos trabalhadores na ilha.
Isto fazia de São Domingos o maior porto negreiro do momento. O horror que era
expresso na própria demografia da colônia: a cada 10 escravos negros, havia 1 colono
livre, seja grande proprietário, pequeno burguês ou da “ralé” branca. A estratificação
social era expressa na hierarquia racial: brancos; homens livres de cor e escravizados
(DUBOIS, 2004).
1
Este artigo é fruto das investigações de doutorado e a primeira exposição de algumas das ideias que são
articuladas na minha tese (QUEIROZ, 2022). Agradeço à CAPES pela oportunidade de conduzir parte da
pesquisa na Universidad Nacional de Colombia, no ano de 2018, como doutorando sanduíche, por meio do
Programa Abdias Nascimento. Da mesma forma, agradeço à Fulbright pela bolsa de pesquisador visitante na
Duke University, no ano de 2021, período de investigação necessário para que este artigo ganhasse forma.

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