Constitucionalismo Iliberal/Illiberal constitutionalism.

AutorMeyer, Emilio Peluso Neder

Introdução

É possível definir conceitualmente um constitucionalismo iliberal? Qual o significado do iliberalismo? De que maneira iliberalismo e constitucionalismo se entrelaçam? Há iliberalismo, e mais, constitucionalismo iliberal como movimento político no Direito Constitucional Comparado? Faz sentido sustentar iliberalismo e constitucionalismo iliberal no Brasil? Todas essas perguntas inquietantes desafiam tradicionais perspectivas teoréticas do Direito Constitucional atreladas à noção de que o constitucionalismo está inerentemente ligado à uma tradição liberal e, principalmente, a uma concepção liberal de democracia (HABERMAS, 1996; DWORKIN, 2002). Em outras palavras, ainda se sustenta que o constitucionalismo só é um regime político que assim pode ser qualificado se ele demonstrar que atende às exigências de um liberalismo político e a demandas por efetivação de procedimentos democráticos.

Este artigo tem como objetivo central o de expandir as lentes de análise teórica do constitucionalismo para nele incluir formas de governança iliberais, ou seja, para definir que é possível que um regime político possa ser qualificado como o de um constitucionalismo iliberal. Isso não significa que se está renunciando ao sentido normativo de um constitucionalismo de bases liberais ou mesmo de um constitucionalismo social que pressuponha elementos liberais. Pelo contrário, ao assumir uma perspectiva que seja, ao mesmo tempo, atenta às distorções pragmáticas e políticas do constitucionalismo liberal, procurando subvertê-lo, mas ao também não abandonar a leitura normativa que postula a necessidade de correções daquelas práticas, é possível melhor diagnosticar certas situações políticas com vistas a normatizá-las. O que se supõe é que pontos de vista normativos estão em tensão com pontos de vista empíricos e que, por isso, não são auto-excludentes.

Como objetivos específicos, procuraremos responder, em parte, às questões que abrem esse artigo, além de suscitar outros questionamentos. É necessário, assim aclarar, em termos conceituais, de que tipo de iliberalismo se está falando. Além disso, deve-se definir as bases do que pode ser chamado de um constitucionalismo iliberal. É preciso, também, saber em que medida a aceitação de regimes políticos que seriam iliberais não normalizaria uma prática política problemática normativamente. Adicionalmente, a verificação da consolidação política do iliberalismo é um passo importante para as conclusões desse trabalho. Metodologicamente, a abordagem deste artigo é crítico teorética, preocupada, mais uma vez, com uma perspectiva tanto normativa quanto empírica. Daí que serão também trabalhadas práticas iliberais que colaboram para a consolidação do conceito de constitucional iliberal, tanto em uma perspectiva comparada quando e uma perspectiva doméstica, enfatizando-se esse último olhar. O destaque será dado para recentes medidas que, buscando soar constitucionais, acabaram por tentar impor políticas de claro cunho iliberal no Brasil.

  1. Iliberalismo contra o que?

    O primeiro passo na definição do que seja o iliberalismo se dá justamente no estabelecimento dos contornos da sua antítese, o liberalismo político. O liberalismo parte do pressuposto de que qualquer restrição à liberdade por autoridades políticas e pelo Direito deve ser justificada. Em diversas facetas, o liberalismo é, de fato, um reconhecimento da necessária proteção da liberdade: seja de forma negativa, ante o afastamento da coerção; seja de forma positiva, ao se agir de acordo com uma vontade livre; seja de forma republicana, para controle da possibilidade de interferência na liberdade (COURTLAND, GAUS e SCHMIDTZ, 2022). Em um sentido defendido por Rawls (1996), o liberalismo político oferece uma estrutura política neutra para as diversas doutrinas de valor que se opõem em uma sociedade marcada pelo pluralismo. Isso implica resguardar normas constitucionais que protegem direitos fundamentais e procedimentos democráticos.

    É partir daqui que se pode refletir sobre a vinculação entre liberalismo e constitucionalismo. Uma visão que se tornou popular nos recentes escritos a respeito das falhas da democracia no final da década de 2010 e início de 2020 é a de que alguns pressupostos mais abstratos estão presentes na própria definição de uma democracia liberal: esta seria atendida cumprindo as autoridades o respeito aos requisitos de manutenção da competição política, de preservação dos direitos de liberdade de associação e expressão e de garantia do Estado de Direito (rule of law) (GINSBURG e HUQ, 2018). Sob autoria similar, também se pressupõe que o constitucionalismo implica uma constituição escrita, direitos individuais, procedimentos qualificados de emenda constitucional, eleições democráticas periódicas e prevalência do Estado de Direito (GINSBURG, HUQ e VESTEEG, 2018, p. 239).

    É possível, pois, notar uma correlação entre constitucionalismo e liberalismo político. Michel Rosenfeld (2003, p. 36) sustentou, logo quando Fukuyama (1993) sugerira que a democracia liberal seria a única opção disponível em termos de regimes políticos, que uma formulação adequada do constitucionalismo implica aceitar as premissas do governo limitado, do Estado de Direito e da proteção dos direitos fundamentais, predicados nada estranhos ao liberalismo político. É bastante conhecida a defesa feita por Jürgen Habermas (1994) de uma complementariedade entre autonomia pública e autonomia privada que tem por consequência também uma implicação mútua entre constitucionalismo e democracia. Esse feixe de conceitos político-constitucionais que resultou do processo aberto pelo período revolucionário pós-1787 e 1789 torna premente a questão de se saber se o constitucionalismo, por si só, poderia ser iliberal.

  2. Definindo o illiberalismo

    Pode-se perceber a gestação do iliberalismo a partir de críticas ao liberalismo vindas de diversos espectros políticos. Ruzha Smilova (in SAJÓ, UITZ e HOLMES, 2022, p. 429) aponta que, a partir da esquerda, vários autores partiram de uma crítica geral ao neoliberalismo. Assim, até mesmo o sentido de uma política agonística, como em Chantal Mouffe (1999), poderia correr o risco de comprometer instituições em uma valorização não refletida do populismo. A partir do conservadorismo, o que estaria em jogo ante o liberalismo é sua capacidade de levar a uma antropologia individualista e atomística. O compromisso da própria possibilidade de uma identidade coletiva teria consequências nefastas para ordens jurídicas "naturais". Ao se valorizar a diversidade e a tolerância, em verdade, o liberalismo criaria mais espaço para a intromissão estatal. A referência principal, aqui, seria Alexander Dugin (2012) e sua tese de um "liberalismo totalitário", em que haveria a combinação de um bolchevismo nacional com valores religiosos e tradições pré-modernas.

    Assim, a ideia de um indivíduo autônomo está na base da destruição da família e dos laços sociais. A partir de concepções como essa, seria possível perceber, para Smilova (in SAJÓ, UITZ e HOLMES, 2022, p. 191), que o illiberalismo combina antigas ideias para aplicá-las segundo valores e concepções de novos tempos. Não é uma perspectiva política que tenha uma única vertente. Ainda assim, seria possível desenhar um núcleo ideacional que é assumido por cada líder ou partido segundo as oportunidades políticas que lhes são mais vantajosas. Três elementos são centrais:

    1. Soberania popular irrestrita: a vontade popular não pode ser controlada por direitos fundamentais e pelo Estado de Direito;

    2. Há um bem comum etnonacionalista que é anti-individualista e antipluralista. Aqui devemos marcar que, se há um anti-individualismo, no sentido do indivíduo como base da sociedade, há um amplo discurso de defesa total e irrestrita da liberdade e, principalmente, uma liberdade sem responsabilidade;

    3. Prevalece um anti-globalismo iliberal.

    A esses elementos centrais, Smilova (in SAJÓ, UITZ e HOLMES, 2022, p. 194) adiciona elementos acidentais que vêm sendo, em geral, percebidos pela literatura. Como apontado, as vertentes do iliberalismo exploram as mais vantajosas oportunidades políticas, o que, por si só, é um elemento autônomo. Além disso, prevalece um sentimento de vitimização coletiva que é central para tanto o discurso de retorno a um passado mais glorioso quanto para se defender uma crítica a pautas identitárias. Some-se a isto a característica da necessidade de referência constante a um líder forte, em geral masculinizado e até fisicamente mais destacado. Verifique-se também o surgimento de um neofeudalismo pelo qual o líder ou partido é sustentado e sustenta determinados estamentos políticos centrais para a o fortalecimento de seu poder político e social.

    No desenho institucional, percebe-se um fortalecimento do Poder Executivo; há tendências a uma oposição ao constitucionalismo e às instituições; e prevalece uma proteção partidária que reduz a competição eleitoral. Finalmente, há apoio a políticas criminais de lei e ordem e uma guerra a o que se chama de pauta do politicamente correto. Pode-se perceber, do parágrafo anterior, algumas das linhas centrais do iliberalismo. Os elementos do presente parágrafo, contudo, começam a aproximar o iliberalismo da própria subversão do constitucionalismo.

  3. Constitucionalismo iliberal: um oxímoro ou um conceito autônomo?

    Landau (in SAJÓ, UITZ e HOLMES, 2022, p. 425) registra que, apesar da consolidação recente de políticas iliberais, não há a adoção explícita, em constituições, de um desenho completo de constitucionalismo iliberal. Tais constituições adotam instituições próprias do constitucionalismo liberal e, em seguida, é que populistas subvertem ou abusam de seus resultados. A afirmação é, em parte, aceitável, mas não na totalidade: a invocação, no preâmbulo da Constituição Húngara de 2012, do cristianismo como base para criar uma narrativa de uma identidade constitucional parcial em relação à religião tem claro perfil iliberal; o mesmo texto...

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