O Constitucionalismo não escrito do Common Law e a Constituição viva/Unwritten Constitutionalism and Living Constitution.

AutorBarboza, Estefânia Maria de Queiroz
  1. Introdução

    Há quem afirme, dentro do constitucionalismo, que a codificação das normas é um requisito para a segurança jurídica e para a prognose das decisões judiciais. Nos países que adotaram o sistema jurídico de tradição do common law, a estabilidade não foi construída com a imagem de que um texto escrito daria conta de tudo, ao contrário, desenvolveu-se num movimento de construção coerente do direito, por meio de precedentes judiciais e valorizando-se a equidade nas decisões judiciais.

    Por outro lado, tendo em vista que as Constituições contemporâneas instituem os direitos humanos e fundamentais (1) como abertos e abstratos, sua mera previsão codificada, tanto no âmbito nacional como internacional, não é suficiente para que o texto dê previsibilidade à sua aplicação. Contudo, pode-se também afirmar ser possível a existência de Constituições não escritas em sistemas caracterizados pelo texto constitucional escrito. Desta forma, queremos explorar que o texto escrito é um dos possíveis modos de representação da constituição, mas não o único.

    Ressaltando este argumento, Inglaterra e Nova Zelândia aparecem como casos interessantes, tendo em vista que não há um texto constitucional reconhecido formalmente, mas documentos esparsos que garantem a materialidade dos direitos fundamentais. Nessa acepção, veja-se, no caso estadunidense e canadense, a construção de um elo entre a constituição escrita e não escrita, propiciando um novo sentido ao texto constitucional. É possível defender a existência de um constitucionalismo não escrito mesmo quando presente uma constituição escrita.

    O ponto que queremos salientar, inicialmente, diz respeito ao vínculo entre o constitucionalismo escrito com o não escrito. Encadeamento que desconstrói o dogma da textualidade, e institui novas possibilidades que definem o que é constituição e direitos fundamentais. Estas novas formas interpretativas são moldadas pelos precedentes judiciais, pelos princípios não escritos, e pela possibilidade de uma constituição viva, e em constante evolução. Isso implica na seguinte premissa: é possível colocar os direitos fundamentais como modelo de aproximação entre o constitucionalismo escrito e não escrito, tanto no sistema legal do common law, como do civil law.

    Dessa forma, considerando o constitucionalismo não escrito como uma das possibilidades de definir o que é uma constituição, esta pesquisa foi dividida em três partes. Na primeira etapa, através de uma análise teórica, o objetivo será apresentar critérios da razão lógica do common law e suas principais características, utilizando como autores Jeffrey Goldsworthy (2008), Mark Walters (2009) e Ronald Dworkin (2006), para, em um segundo momento, estudar a importância e fundamentalidade dos precedentes judiciais e de entender o direito como integridade. Na última etapa, apresentaremos a possibilidade de definir a Constituição não escrita como uma constituição viva e em constante evolução, para a promoção de novos direitos fundamentais.

    Metodologicamente, a comparação jurídica é a operação intelectual do contraste entre ordenamento jurídicos, institutos e normativas de diferentes sistemas, a fim de oferecer uma autorreflexão ou o desenvolvimento de valores cosmopolitas (VERGOTTINI, 2004; HIRSCHL, 2014). Desse modo, a partir do método funcionalista, busca-se compreender as principais características do constitucionalismo não escrito do common law, desde uma perspectiva interna dos autores/as, inseridos no contexto do civil law (VALCKE, 2012). Portanto, buscamos analisar os contrastes e peculiaridades entre os dois sistemas, isto é, apontar os principais encadeamentos entre o constitucionalismo escrito com o não escrito.

  2. Common law e o direito não escrito como fruto da razão lógica

    Diferente do civil law, no qual a autoridade da lei está na autoridade de quem a promulgou, no common law, a autoridade do direito está em suas origens e em sua geral aceitabilidade por sucessivas gerações. Por essa razão admite-se a autoridade do direito construído jurisprudencialmente. A jurisprudência tem, desse modo, papel determinante tanto em sua origem quanto em sua evolução (BARBOZA, 2011).

    Embora não haja no direito inglês uma Constituição escrita, o que os ingleses chamam de Constituição, na verdade, é o conjunto de regras de origem jurisprudencial ou legislativa que garantem as liberdades e os direitos fundamentais e estabelecem limites às autoridades. Mais recentemente, pode-se afirmar que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos ratificados pela Inglaterra também fazem parte de sua Constituição material (BARBOZA, 2011).

    Dizer que o direito inglês é predominantemente Judiciário significa dizer que a fonte primária do seu direito são as decisões judiciais, sendo de extrema importância o papel criador de seus juízes (judge-made-law), dando-se reconhecimento à autoridade de seus precedentes. Destarte, a legal rule no direito inglês não se confunde com a regra do direito nos sistemas de civil law. O statute law tem função apenas complementar, porque pressupõe a existência dos princípios gerais criados pela jurisprudência, ou seja, as leis só possuem sentido em relação ao common law, não de forma autônoma (BARBOZA, 2011).

    Ainda, o common law inglês é um direito Judiciário, na medida em que ele é primordialmente prático, pragmático, e casuístico. O direito inglês não é um direito acadêmico e, portanto, não tem princípios abstratos, nem juristas teóricos; ao contrário, é um sistema de case-law, em que os juízes são práticos e cuja função é de aplicar a justiça e não alguma fórmula de direito preestabelecida. A cada nova situação corresponde uma nova regra, e a ligação ao passado existe para transmitir o procedimento que permite ao juiz chegar à novidade normativa que, por sua vez, não vem a ser criada ex nihilo, mas é elaborada com base nas regras jurídicas já formadas pelos precedentes, devendo o juiz apresentar as razões e os fatos que distinguem ou não o caso atual daquele já julgado anteriormente (BARBOZA, 2011; DWORKIN, 2007).

    Assim, o common law pode ser considerado, deste modo, um sistema aberto, na medida em que é possível encontrar a solução jurídica mais adequada a posteriori, pois normas são elaboradas e reinterpretadas continuamente, baseadas principalmente na razão e na racionalidade do julgamento, reivindicando uma validade intersubjetiva, pois se uma decisão é válida para um caso específico, deve ter mesma validade para as demais instâncias (ELDIN, 2007). Este tipo de constitucionalismo tem uma longa história em países anglo-saxônicos, como por exemplo, no Canadá, possibilitando que princípios "não escritos" desempenhem um papel fundamental na efetivação de direitos fundamentais (MACDONNELL, 2019).

    Outro país que merece destaque é a Nova Zelândia, que apesar de não ter uma Constituição formalmente escrita, se insere no constitucionalismo não escrito do common law, com a edição de uma lei formalmente ordinária, chamada de New Zealand Bill of Rights Act, concedendo-a reconhecimento material como carta constitucional. Este documento tem sido um importante instrumento para a prática do judicial review, e na limitação de atos legislativos (HARRIS, 2007).

    Por outro lado , decorre que, com frequência, textos constitucionais são ambíguos, possibilitando novas interpretações e mudanças nos precedentes judiciais (BARBOZA, 2011). Veja-se, por exemplo, no caso estadunidense Riggs v. Palmer, a discussão sobre a possibilidade de recebimento de herança por quem cometeu homicídio em face do testador. A Suprema Corte decidiu que ninguém pode se beneficiar fundamentando em seu próprio ilícito, impossibilitando o recebimento da herança. Em sentido semelhante, a Suprema Corte inglesa decidiu que a viúva que comete homicídio contra seu marido, não tem direito ao recebimento de pensão (GOLDSWORTHY, 2008; DWORKIN, 2010).

    Nesses casos, o poder judiciário invocou o sentido da norma, o que chamaremos de constitucionalismo não escrito. Portanto, há um sentido primacial no constitucionalismo do common law que é preciso ser explorado. Parafraseando Mark Walters (2009, p. 253), "o direito não escrito é uma metáfora que representa o tipo de proposição jurídica que é derivada de um discurso da razão (2) ", capaz de capturar proposições jurídicas relevantes para a solução do caso, desconsiderando o texto como expressão canônica e limitadora do direito (WALTERS, 2008). A interpretação, aqui pensada, concede ao texto constitucional um papel meramente cerimonial, encarnando como condição primordial a análise de decisões anteriores, isto é, os precedentes judiciais (STRAUSS, 2010).

    O que nos parece muito relevante na definição do constitucionalismo não escrito, é entender que sua conceituação não se limita à ausência de texto legal, mas de múltiplas possibilidades interpretativas. Essas decisões sempre remeterão a precedentes anteriormente decididos, em movimento contínuo, evolutivo e racional. Portanto, a principal distinção entre o direito escrito e não escrito é sua articulação argumentativa fundamentada em princípios gerais, sejam escritos ou não (WALTERS, 2008).

    Em outras palavras, poderíamos entender o direito não escrito do common law como resultado de um discurso racional, em que proposições jurídicas são analisadas, sem limitação ao regramento previsto em tela, mas com base em manifestações abstratas, na qual podem arquitetar novas proposições jurídicas derivadas. Veja-se que, o constitucionalismo não escrito do common law não se fundamenta apenas em costumes ou tradições, mas no discurso racional, articulando novas regras, direitos ou princípios que dialogam com precedentes já estabelecidos (WALTERS, 2001; WALTERS, 2008).

    Por outro lado, é possível afirmar que em seu sentido formal, o discurso da razão do common law é apenas um método ou técnica da razão que produz respostas em questões do direito altamente técnicas ou moralmente questionáveis. Mas a igualdade da razão (equality of reason) que define...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT