Constitucionalismo popular e democrático: uma boa ideia em contextos de autoritarismo crescente?/Popular and democratic constitutionalism: a good idea in contexts of increasing authoritarianism?

AutorGomes, Juliana Cesario Alvim

Introdução*

A agenda de pesquisa constitucional sofreu um deslocamento que se relaciona com as mudanças políticas, econômicas, sociais e culturais ocorridas nos últimos anos. O final dos anos 1990 e os anos 2000 foram marcados pela preocupação com o protagonismo do Poder Judiciário--e, em especial, das cortes constitucionais--em relação aos demais poderes, com seus consequentes impactos para a democracia e a política (1). Em reação a esse fenômeno, foram pensadas respostas hermenêuticas e institucionais que buscavam se contrapor a seus limites e excessos.

Uma dessas proposições sugeria o abandono da perspectiva constitucional juriscêntrica e apontava para a necessidade de se considerar tanto descritiva quanto normativamente a centralidade do papel de cidadãos e cidadãs na construção do significado constitucional. Propunha-se uma abordagem popular, democrática, inclusiva e difusa para a relação entre a Constituição e o povo, no que ficou conhecido sob os rótulos de "constitucionalismo popular" e "constitucionalismo democrático" (2).

Mais recentemente, contudo, a atenção de parte significativa da literatura tem se redirecionado: do excesso dos tribunais para aqueles cometidos por representantes eleitos que, por meio da modificação de arranjos legais e institucionais, comprometem atributos fundamentais da democracia constitucional relacionados a direitos básicos, funcionamento do processo democrático e respeito ao Estado de Direito. Nesse cenário, verifica-se a perda de qualidade das democracias que, ao invés de ocorrer por meio de uma ruptura explícita e imediata, se dá por ações abusivas progressivas e cumulativas (GINSBURG; HUQ, 2018). Frequentemente, essas ações envolvem ataques e interferências por parte dos poderes Executivo e Legislativo no Judiciário (GINSBURG; HUQ, 2018).

No Brasil, esse quadro de deterioração, cujos elementos embrionários já vinham sendo verificados anteriormente, se agrava com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência em 2019 (MEYER, 2021). Em breve síntese, verifica-se uma crescente militarização da política, com ameaças de intervenção militar no sistema político, perseguição a universidades, jornalistas, servidores públicos e opositores, o uso abusivo e ilegal de decretos e ataques à higidez do sistema eleitoral. Do ponto de vista da relação entre Executivo e Judiciário, as tensões se intensificam e, além de intimidações pessoais a ministros do STF, são veiculadas por parte do presidente ameaças de descumprimento de decisões judiciais e de interferência direta na composição e organização do STF. Como resposta, o tribunal adota uma série de medidas: passa a alargar seus poderes de investigação contra o presidente e seus aliados, relativiza prerrogativas de legisladores, como a imunidade material, e empodera governos estaduais em relação ao federal (GOMES; ARGUELHES; PEREIRA, 2022).

Nesse novo contexto, em que o autoritarismo se estabelece e progride no sistema constitucional de maneira gradual e notadamente pelas vias democráticas com apoio das maiorias políticas, coloca-se a questão fundamental de se, e em que medida, uma proposta de popularização da Constituição se sustenta. Isto é, faria sentido defender a centralidade da participação popular no processo de interpretação constitucional em uma conjuntura em que as maiorias políticas apoiam medidas antidemocráticas e em desrespeito aos direitos fundamentais? O que esse fato evidencia sobre a própria pertinência e a solidez das teorias de constitucionalismo popular e democrático em contextos em que o Poder Judiciário não é percebido como a maior fonte de preocupação em relação ao sistema constitucional democrático?

São essas questões que o presente artigo pretende explorar. Para isso, a primeira parte busca situar o debate constitucional sobre democratização da Constituição na produção nacional mais ampla sobre mobilização social do direito, sugerindo razões para o seu desenvolvimento tardio. A partir de trabalhos produzidos por mim anteriormente, o item 2 recupera as principais características das propostas de constitucionalismo popular e democrático nos Estados Unidos dos anos 2000 e sua influência no Brasil e na América Latina. Por sua vez, o item 3 explora as críticas que essa literatura sofreu à época de sua elaboração. A partir dessas considerações, na quarta parte, é realizada uma reflexão sobre a aplicabilidade e a pertinência de teorias de popularização constitucional em contextos autoritários. Por fim, o item 5 apresenta dois casos ocorridos durante o governo Jair Bolsonaro que auxiliam a ilustrar alguns dos aspectos debatidos ao longo do trabalho: a extinção de conselhos participativos no âmbito da Administração Pública Federal e a disputa pelo significado do artigo 142 da Constituição Federal de 1988.

Pessoalmente, esse trabalho é um reencontro crítico com uma temática com a qual trabalhei ao longo de dissertação de mestrado elaborada entre 2012 e 2014 no Programa de Pós-graduação em Direito da UERJ. À época, o contexto político era, de maneira geral, bastante diverso do atual, mas já se evidenciavam traços do autoritarismo que se tornaria ainda mais explícito uma década depois.

  1. Mobilização social e Direito Constitucional

    A mobilização social do direito atravessa áreas e disciplinas e é objeto de uma vasta produção.

    No Brasil, importantes trabalhos exploram essa temática. Da perspectiva historiográfica e antropológica, por exemplo, tem sido abordado o uso do direito e do aparato judicial pelo movimento abolicionista no império (3), bem como por movimentos populares no início da república (4) e na atualidade (5). Do ponto de vista sociológico, tem-se examinado a existência e o desenvolvimento de instâncias de resolução de conflito fora do Poder Judiciário (6). Partindo da atuação prática, investiga-se aspectos e desafios da advocacia popular (7) e do litígio de interesse público (8), e no âmbito da ciência política, o papel de instituições como a Defensoria Pública e Ministério Público em casos envolvendo interesses coletivos e difusos (9).

    Nesse último campo, ao longo da década de 2000 também se destacam trabalhos que chamam atenção para o papel da conjuntura e da atuação política na efetivação de direitos pela via judicial. (10) A partir do início dos anos 2010, ganham espaço investigações sobre a mobilização do aparato judicial por organizações e movimentos sociais por meio de categorias relacionadas à teoria do processo político (como "estruturas políticas" e "oportunidades de mobilização"). (11) Noutro giro, em uma abordagem crítica e normativa, autores do chamado "Direito achado na rua", "Direito Alternativo" e "Direito insurgente (12) têm, há mais de quatro décadas, assinalado a relevância do Direito que se desenvolve fora dos tribunais.

    Apesar disso, no Direito Constitucional contemporâneo, a mobilização social do direito é um tema que tradicionalmente não é enfrentado (13). Algumas razões podem ser apontadas para isso. Primeiro, a cisão entre as disciplinas levaria a um desconhecimento da produção desenvolvida em outros campos. Adicionalmente, o emprego na produção proveniente das ciências sociais de "estruturas conceituais que não são familiares aos juristas" (14) faria com que estes últimos se mantivessem alheios a essa temática e, em sentido contrário, a esfera propriamente jurídica ficasse de fora desses trabalhos ou limitada ao âmbito infraconstitucional (15). Além disso, no senso comum jurídico tradicionalmente prevalece uma perspectiva juriscêntrica: um olhar direcionado para as cortes e para o intérprete judicial. Esse fenômeno se reflete no ensino e nas pesquisas jurídicas, voltados para os entendimentos, práticas e instituições forenses.

    Essa concepção tem como pano de fundo não uma noção de Direito responsivo às necessidades sociais, mas uma ideia de Direito como sistema autônomo, que conta com instituições judiciárias especializadas e dotadas de supremacia qualificada dentro de suas esferas de competência (NONET; SELZNICK, 1978). Originalmente, essa visão relacionava-se a uma matriz positivista formalista que delimitava fronteiras claras entre Política e Direito e entre as funções legislativa e judiciária, enfatizando a aplicação de regras e da justiça procedimental, em detrimento da justiça substantiva (NONET; SELZNICK, 1978). Atualmente, o monopólio judicial sobre o Direito Constitucional fundamenta-se em razões opostas relacionadas ao neoconstitucionalismo, à constitucionalização do direito e à judicialização da política e das relações sociais, como o reconhecimento da força normativa dos princípios jurídicos e a reaproximação entre Direito e Moral (16).

    Entretanto, mais recentemente, a relação entre, de um lado, o Direito Constitucional e, de outro, cidadãos, povo e movimentos sociais e grupos de influência tem sido repensada, e a questão da mobilização social tem emergido nesse âmbito como objeto de estudo a partir de perspectivas variadas.

    Alguns trabalhos, partindo de experiências concretas de litígio, oferecem insights sobre táticas, obstáculos e oportunidades identificados por movimentos sociais e entidades da sociedade civil atuando perante o Supremo Tribunal Federal (17). Um segundo conjunto de obras enfoca a atuação de certos movimentos ou mobilizações em torno de causas específicas que possuem dimensões constitucionais, oferecendo uma visão sobre a trajetória de casos e causas e relacionando mobilizações e elementos políticos e conjunturais aos resultados alcançados no Judiciário (18). Uma terceira perspectiva direciona seu olhar para dentro das cortes e busca mapear litigantes, interesses e padrões de atuação por meio da observação dos mecanismos de participação nos processos judiciais, como a propositura de ações (19) e a atuação como amicus curiae e em audiências públicas (20).

    Outros aspectos que também vem sendo explorados, ainda que de maneira incipiente, envolvem a investigação sobre as razões que incentivam ou impedem grupos e movimentos de recorrerem determinadas...

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