Constitucionalismo transformador: entre casas de máquinas e "engenharia social judicial"/Transformative Constitutionalism: between engine rooms and "judicial social engineering".

AutorArguelhes, Diego Werneck
  1. "Constitucionalismo transformador" como projeto(s) constitucional(is)

    A elaboração de um texto constitucional é um processo tanto de criação, quanto de reprodução e adaptação de ideias e modelos que já estão em circulação. As Constituições dos EUA (1787) e da Espanha (1812, a Constituição de Cádiz) inspiraram muitas outras constituições no século XIX, em especial na América Latina; por sua vez, a Constituição do Chile de 1833 adaptou essas ideias de maneira influente nas outras constituições da região no período (Gargarella 2013). O século XX, porém, ampliou largamente o repertório constitucional mundial, em vários aspectos, levando a um progressivo e relativo declínio da proximidade entre novos textos constitucionais e aqueles existentes no século anterior (Law e Versteeg 2012). (1) No caso da América Latina, em particular, a desigualdade - ou a "questão social", no vocabulário da época - se torna central no debate constitucional já no início do século XX. Embora a "questão social" já estivesse em pauta na região no século XIX, , sua importância nos textos promulgados era mais reduzida. Prevaleceram preocupações de conservadores com a manutenção da ordem social e política, bem como (na esteira dos EUA) preocupações liberais com a limitação do poder estatal (Gargarella 2013).

    A partir da constituição do México (1917), a pauta constitucional da região se expande para incluir direitos sociais e direitos a prestações positivas do estado (Grote 2017). A transformação se dá não apenas no conteúdo das constituições, mas quanto ao papel esperado do estado e às próprias ambições constitucionais. Constituições passam a conter tipos de elementos mais variados do que o "modelo" liberal dos EUA e demais constituições do século XIX, mas também passam a expressar objetivos distintos. O que se pode e o que se deve esperar de um texto constitucional se amplia.

    Toda Constituição, em sentido jurídico, é evidentemente uma criatura do mundo do dever ser; não pretende, nem pode perfeitamente descrever nenhuma sociedade. Mais ainda, toda Constituição é, em alguma medida, expressão de aversão a algum tipo de prática política ou social com a qual aquela sociedade conviveu e que deseja impedir que ocorra novamente. (2) Mas, no caso de constituições que hoje chamamos de "transformadoras", há algo mais: o texto constitucional é expressão de um projeto político de mudança social por meio de mecanismos constitucionais, que vincula os poderes estatais na atuação positiva em direção ao estado de coisas delineado pela constituição. Em contraste com a constituição dos EUA, aqui a constituição não é feita para preservar a sociedade contra eventuais mudanças negativas em um estado de coisas que basicamente já existia no momento de sua promulgação, nem apenas para impedir a ressurgência de práticas que a comunidade aprendeu a considerar negativas.

    Como observa Damaska (1990, p. 432), em contraste com muitos de seus contemporâneos na França no período revolucionário, os criadores da constituição dos EUA "não contemplavam mudança alguma nas relações sociais por meio do uso do poder do governo". Uma constituição transformadora iria além disso, nas duas dimensões: ela (i) pretende mudar as condições sociais e políticas existentes, em vez de preservar o status quo; e, nesse sentido, (ii) representa não apenas um repúdio de práticas pontuais passadas, mas a rejeição do próprio status quo - não apenas aversão ao passado, mas aspiração de futuro distinto do presente da comunidade. Justamente por essa relação com o status quo - não de preservação, mas de transformação; não só repúdio às práticas do passado, mas exigência de um futuro específico -, constituições transformadoras colocam perguntas distintas para a teoria constitucional.

    Neste artigo, discutiremos conceitualmente, comparativamente e normativamente o constitucionalismo transformador ("CT"). A seção 2 discute conceitos de CT, para além da simples classificação de constituições. Em um sentido mínimo, CT deve ser entendido como um projeto constitucional: dado um texto constitucional e certas aspirações de transformação do status quo, CT caracteriza certas formas de engajamento da comunidade jurídica e das instituições com esse texto na implementação da visão de transformação social de alguma forma já delineada pela constituição. Esse sentido mínimo, porém, é compatível com uma série de variações.

    Na seção 3, apresentamos uma visão geral de experiências de CT na América Latina, incluindo debates recentes sobre o papel do sistema interamericano de proteção aos Direitos Humanos. Na seção 4, discutiremos a relação entre CT e as instituições necessárias para esse projeto constitucional. Tribunais constitucionais têm ocupado parte da imaginação de constitucionalistas engajados com CT - seja de seus críticos, seja de seus defensores. Contudo, essa perspectiva centrada em tribunais é limitada do ponto de vista descritivo e problemática de pontos de vista normativos e instrumentais, considerando os próprios objetivos do CT. Na seção 5, ampliar a perspectiva institucional sobre CT, discutiremos teorias recentes que criticam o foco exclusivo em direitos e instituições judiciais e trazem para o debate a reforma de processos políticos decisórios e a criação de instituições inclusivas, como formas de atender ao próprio projeto transformador. Na seção 6, discutiremos algumas potenciais tensões entre certas concepções de CT e a própria ideia de democracia, de um ponto de vista normativo, apontando para os riscos de pensar constitucionalismo transformador como uma espécie de "engenharia judicial social".

  2. Dimensões, variações e modelos de CT

    A qualificação "transformador" é às vezes atribuída diretamente a textos constitucionais que expressam compromisso de mudança social dirigida ao modelo de uma sociedade justa e de uma visão do bem comum, delineados no próprio texto. A ambição constitucional é a de transformar a sociedade e suas instituições em direções prédeterminadas pela própria constituição. Textos constitucionais transformadores, nesse sentido, são ao menos tão antigos quanto a entrada da "questão social" na pauta constitucional mundial, com a Constituição do México (1917) e a Constituição de Weimar (1919) e suas promessas de direitos sociais. Nessa perspectiva, é possível pensar em listas mais ou menos expansivas de elementos necessários para a caracterização de uma constituição como transformadora: generosas listas de direitos sociais (Oquendo 2013); o reconhecimento de tratados internacionais de direitos humanos como detendo status constitucional (Antoniazzi et al. 2017); cláusulas e preâmbulos que reafirmam o compromisso de um povo com uma sociedade mais igualitária (Leal 2018); cláusulas que buscam aumentar a participação democrática (Von Bogdandy 2020).

    O constitucionalismo liberal se caracteriza por procedimentos, proibições e autorizações ao que o estado pode fazer, institucionalizando, distribuindo e controlando o exercício do poder político (Loewenstein 1986, 214). Constituições transformadoras expressam potencialidades que permaneciam latentes em um modelo estritamente liberal. Como observa Waldron (2016, 33), quando associamos "constitucionalismo" a uma ideia de vinculação de atores estatais a regras e procedimentos, é preciso lembrar que a lógica normativa é trivalente, não bivalente; ações estatais podem ser proibidas, permitidas, ou exigidas. Constituições transformadoras fazem muito mais do que simplesmente dizer o que o estado pode ou não pode fazer, estabelecendo também o que deve ser feito a partir de uma visão específica extraída de interpretações da Constituição.

    Hailbronner (2017) argumenta que constituições transformadoras concebem a si mesmas como "a comprehensive order for a more just and equal society and a tool to prompt state action to that purpose as much as restrain it". Substantivamente, CT representa uma mudança não apenas no que uma constituição pode conter, mas também no que ela pode fazer - e, com isso, até mesmo o que uma Constituição pode ser: menos um instrumento de preservar liberdades e modos de vida já existentes, e mais uma ferramenta para transformar uma sociedade em algo que ela ainda não é, mas se obriga a caminhar para ser. Em contraste com o modelo original dos EUA, esses textos expressam uma concepção do direito e do poder do Estado não apenas como "reativo" ou "negativo", mas passível de ser ativamente utilizado para promover fins públicos desejáveis - e a própria Constituição já exigiria que fossem utilizados nessa chave "positiva". (3)

    Contudo, textos constitucionais podem ser criados, interpretados e vividos ao longo do tempo dentro de diferentes conjuntos de crenças sobre como, quem, e para que devem ser aplicados. Por exemplo, é perfeitamente possível a existência de uma Constituição em um sistema político em que não prevalece a ideologia que tipicamente chamamos de constitucionalismo liberal (Brown, 2002). Da mesma forma, é possível que uma constituição deliberadamente desenhada como transformadora exista em uma comunidade jurídica que a interpreta como uma típica constituição liberal, com instituições que assumam os compromissos com mudança social exigidos pelo texto. (4)

    Note-se que CT não é apenas um outro termo para designar uma visão constitucional "social". Considere, por exemplo, a constituição da União Soviética de 1936. O texto previa, em seu artigo 11, que "a vida econômica da U.R.S.S. é determinada e dirigida pelo plano econômico do estado com o objetivo de aumentar a riqueza pública, de consistentemente aumentar as condições materiais do povo e elevar o seu nível cultural, de consolidar a independência da U.R.S.S. e fortalecer suas capacidades defensivas". É difícil não reconhecer neste dispositivo a aspiração por mudanças sociais ao longo do tempo. Contudo, a constituição e o direito constitucional tinham papel nulo no funcionamento do regime nas décadas subsequentes, minando qualquer potencial transformador original...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT