Constitucionalismos.

AutorPereira, Jane Reis Gonçalves

De acordo com a tradição liberal moderna, o termo constitucionalismo designa o movimento político e jurídico que preconiza a adoção de constituições como instrumentos que limitam e organizam o poder do Estado, estabelecendo a separação de poderes e enunciando direitos individuais. Tal formulação, atrelada às ideias de democracia e direitos humanos, foi expandida a partir das revoluções liberais iniciadas no século XVII. Desde então, o movimento se ampliou e passou a abarcar, sobretudo no século XX, a ideia de que a constituição é norma jurídica imperativa e vinculante, dotada de superioridade formal e apta a limitar a ação do poder legislativo. Nesse contexto, o controle judicial de constitucionalidade passou a integrar os eixos centrais de compreensão do constitucionalismo.

Ao longo de seu processo de afirmação histórica, as concepções tradicionais de constituição e constitucionalismo sofreram o influxo de duas tendências muito distintas. Por um lado, tais categorias foram retoricamente apropriadas por regimes autocráticos que, ao utilizarem estruturas com feição constitucional, buscavam conferir aparência de legitimidade às práticas antidemocráticas e iliberais implementadas. Nesse âmbito, o conceito de constituição é tensionado pelo fato de projetos autoritários adotarem o vocabulário e as formas do constitucionalismo como simulacros de legitimidade. De outro lado, e em sentido inverso ao anterior, o significado do constitucionalismo passa a ser preenchido por outras perspectivas democráticas, que lhe conferem maior densidade, ao mesmo tempo em que reformulam e reforçam sua genealogia inclusiva. A atualização do significado de constituição, sob esse segundo ângulo, é desdobramento natural e necessário das inúmeras transformações sociais, culturais, econômicas e políticas que complementam e entram em tensão com suas primeiras versões. O constitucionalismo liberal oitocentista passa por questionamentos e revisões que reivindicam protagonismo para atores excluídos do projeto originário, requerendo adaptações do conceito como consequência do entendimento da constituição como documento democrático situado no tempo e no espaço.

Essas duas tendências revelam um aparente paradoxo que acompanha os debates sobre o constitucionalismo e a constituição. Ao mesmo tempo em que são categorias em disputa e sob constante demanda por atualização, há nelas um sentido essencial que merece ser preservado, para evitar que tenham suas finalidades subvertidas ou que sejam usadas como meros dispositivos retóricos. Assim, pensar o constitucionalismo como um fenômeno plural, multifacetado e em contínua mutação envolve o desafio de incorporar novos significados e pautas ao projeto constitucionalista e, simultaneamente, lidar com o risco de deturpação e perda de sentido do conceito. Teorizar sobre o(s) constitucionalismo(s), portanto, é uma empreitada que envolve tanto a necessidade de incorporar demandas, pautas e atores no cenário constitucional, como de impedir que a banalização do conceito promova um esvaziamento do seu significado.

Tendo essa preocupação em mente, o presente Dossiê traz contribuições que se debruçam sobre variadas manifestações do constitucionalismo e buscam dar-lhes substância teórica. Os trabalhos analisam as variações no entendimento do fenômeno constitucional de forma consistente e original, buscando identificar seu núcleo principal e sua relação com a tradição constitucionalista. Assim, cada um dos constitucionalismos aqui apresentados discute o papel da constituição de forma crítica e questionadora, sem, contudo, abrir mão da proteção aos direitos fundamentais e da limitação do poder como ideias regulatórias.

O Dossiê se inicia com o questionamento das próprias bases do constitucionalismo brasileiro e de como a influência francesa e norte-americana ofuscou processos e projetos nacionais próprios. Tomando como modelo de análise a experiência política de Palmares, Ana Flauzina e Thula Pires analisam a resistência de mulheres negras e indígenas à colonização e, adotando o referencial teórico da amefricanidade, propõem uma releitura do período colonial com centralidade às experiências e ao pensamento das resistências negra e indígena. Apresentando Palmares como "um ambiente de fraternidade racial, pluricultural e pluriétnica", as autoras demonstram que "por mais de um século se vivenciou naquele corpo-território a experiência de uma liberdade anticolonial amefricana", e sua organização traz importantes contribuições e reflexões, como o questionamento da "noção de povo sem recorrer à noção de homogeneidade". A partir dessa análise, é desenvolvida a ideia de Constitucionalismo da Inimizade, que destaca como o constitucionalismo (moderno e contemporâneo) não apenas convive, mas, muitas vezes, colabora para a existência e reprodução da lógica de que há um inimigo que deve ser combatido.

Também seguindo a contestação das bases do constitucionalismo centradas nos modelos europeu e norte-americano, Diego Werneck Arguelhes e Evandro Proença Süssekind discutem a noção de Constitucionalismo Transformador na América Latina e na experiência sul-africana. Tal modelo designaria, em linhas gerais, um projeto de transformação social através do direito constitucional. Seu uso, no entanto, levanta diversas...

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