Contrabando legislativo e a implantação do estaleiro Enseada Indústria Naval: caminhos e descaminhos do empreendimento

AutorÍcaro Argolo Ferreira
CargoDoutor em Políticas Sociais e Cidadania (UCSal), Professor de Direito na FACEMP. Contato principal para correspondência. Universidade Católica do Salvador - UCSAL, Bahia, Brasil. ORCID Id: http://orcid.org/0000- 0001-7921-4463 Lattes: http://lattes.cnpq.br/8637270011810 http://lattes.cnpq.br/1498834795084888 347 E-mail: adv.icaroargolo@gmail.com
Páginas486-524
Revista de Direito da Cidade vol. 13, nº 1. ISSN 2317-7721
DOI: 10.12957/rdc.2021.58570
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mantendo-se os t ermos da sentença que determinou a recomposição i ntegral do meio ambiente
indevidamente degradado e declarou a nulidade dos atos que autorizaram o aterro e a construção do
estacionamento de caminhões. Vale notar que a proteção do uso coletivo do bem se deu, mesmo diante
de terreno apenas abstratamente destinado a tal. Protegeu-se a mera finalidade de acessibilidade a todos,
em detrimento de outra que impedisse a potencial destinação coletiva do bem. Assim, destacou-se que a
afirmação de escasso uso do espaço de lazer pela coletividade não é justificativa apta a legitimar o ato de
desafetação pelo Poder Público, visto que a finalidade desses espaços não se esgota na utilização, mas na
mera disponibilidade do bem à coletividade.
Na mesma direção, o Superior Tribunal de Ju stiça analisou Ação Civil Pública
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que questionava a
desafetação de bem de uso comum do povo, in casu, uma praça, para a categoria de bem dominical, o que
viabilizou a doação do imóvel ao Instituto Nacional do Seguro Social INSS, com o propósito de instalação
de nova agência do órgão federal. Destacou-se que o não uso ou pouco uso do espaço público pela
população não pode servir de justificativa para o ato de desafetação, uma vez que a finalidade desses
locais públicos não se resume, nem se esgota na efetiva utilização do bem pela comunidade, mas no mero
acesso e disponibilização do espaço à coletividade do presente e do futuro. O Tribunal afirmou, ainda, que
a desafetação do bem público, se efetuada sem critérios sólidos e objetivos, como no caso em tela, torna-
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público deveria encontrar no Estado o seu maior protetor.
No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, sob relatoria do Min. Herman Benjamin, merece
destaque o REsp 1.391.271/RJ,
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em que foi considerada inviável a alienação de certa área reservada a
estacionamento público, bem como a sua desafetação ou alteração de sua finalidade para torná -la
edificável. Tratando de questão urbanística, entendeu-se pela necessidade de que se proceda levando em
conta sempre o interesse coletivo, à luz da função socioecológica prevista na Constituição da República.
Na ocasião, afirmou-se que:
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cumpre p arcialmente seu dever, visto que tais atributos requerem gestão,
conservação, melhoramento, fiscalização, defesa e garantia da isonomia entre os
beneficiários. Mas, sabemos, o Estado zela mal por seu próprio patrimônio, até
porque ocorre de encarnar, ele mesmo, o maior destruidor ou degradador, direto ou
indireto, da coisa pública, sendo o urbanismo e o meio ambiente duas de suas
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STJ, 2ª T., REsp 1.135.807/RS, Rel. Min. Herman Benjamin, julg. 15.4.2010.
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STJ, 2ª T., REsp 1.391.271/RJ, Rel. Min. Herman Benjamin, julg. 3.11.2015.
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A 2ª Turma registrou que o Estado, enquanto tal, é detentor de dois papéis primordiais: não só do
ato jurídico de afetação (ou desafetação) do bem; mas especialmente da conservação e manutenção
deste. Pouco razoável, portanto, que possa o ente público utilizar-se da técnica da desafetação, quando
sequer cumpriu seu dever enquanto gestor d a coisa pública. Relaciona-se a questão ao recente e trágico
incêndio ocorrido no Museu Histórico Nacional,
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no Rio de Janeiro, em que o bem, embora afetado a fim
público como bem de uso especial, não obteve a atenção e o investimento estatal necessários em termos
de conservação. Diante desse caso e de muitos outros na mesma direção, que denunciam a carência de
cuidado do Estado, há, inclusive, quem defenda que o controle e a gestão desses bens afetados devam ser
exercidas por entidades interestatais ou ultra estatais (CORTIANO, JR.; KANAYAMA, 2016, p. 488),
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que
se adequariam ao interesse coletivo de modo eficaz e seguindo os devidos deveres e precauções, pon to
em que se ligam diretamente à teoria dos Commons.
A mesma Turma, analisou outra interessante situação, por ocasião do julgamento d o REsp
1246853/PR,
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envolvendo a temática da de sapropriação indireta. No caso em tela, vislumbrou-se
hipótese em que, entre os anos de 1969 e 1977, foram construídas ruas sobre parte do imóvel de
propriedade privada de determinada pessoa, a qual promoveu, em 1978, Ação de Indenização, dado que
o ato expropriatório não seguiu o devido procedimento legal, caracterizando a chamada desapropriação
indireta. Contudo, a ação foi extinta sem julgamento de mérito por sentença transitada em julgado em
1986. Mais de vinte anos depois, a proprietária do bem firmou, em 1998, contrato de permuta com dois
contratantes, cujo objeto foi parcela do imóvel original, por onde passavam as ruas. Tempos depois, no
ano de 2002, os dois contratantes propuseram Ação Indenizatória em face da Administração Pública.
O entendimento do STJ foi no sentido de que os dois contratantes não são proprietários, nem
possuidores do terreno ocupado pela via pública, afinal, ao afetar parcela do imóvel ao uso públi co entre
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Em 2004, o então secretário de Energi a, Indústria Nav al e Petróleo do Ri o de Janei ro, Wagner Victer, atestou
diversas irregularidades durante visita que fez ao Museu Histórico Nacional em novembro daquele ano. O secretário
informou ter ficado impressionado com a situação das instalações elétricas que, segundo ele, já estavam em estado
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https://mtst.org/noticias/incendio-no-museu-historico-nacional-entenda-a-origem-do-desmonte-do-museu-
nacional-e-sua-tragedia/. Aceso em: 2.11.2019).
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quais serão exercidos por entidades interestatais, ou ultra -estatais, visando, s empre, a manutenção dos bens
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STJ, 2ª T., REsp 1246853/PR, Rel. Min. Herman Benjamin, julg. 7.2.2013.
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DOI: 10.12957/rdc.2021.58570
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1969 e 1977, através da construção de tais ruas, houve inequí voca incorporação do bem ao patrimônio
público. O contrato de permuta f irmado, muito tempo após a i ncorporação do bem ao patrimônio
municipal por desapropriação indireta, não inclui a parcela do imóvel af etada ao uso comum. O Mi n.
Relator do recurso chega a sublinhar que:
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ruas e praças, são inalienáveis e indisponíveis, exceto se houver desafetação, em
procedimento próprio e legítimo, o que evidentemente não ocorreu, sendo
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Trata-se de hipótese de incorporação parcial do bem, e não de pretensa alienação do pa trimônio
público à ini ciativa privada. Assim, ficou sublinhado que ninguém pode dispor do que não lhe pertence,
muito menos alienar, como se seu fosse, parte do patrimônio da coletividade, presente e futura. No caso,
por conseguinte, afastou-se o direito de propriedade ao particular quando um bem, ainda que sem
procedimento formal adequado e sem pagamento de prévia e justa indenização, é afetado a uma
destinação pública para uso comum do povo.
Em outra ceara, e diante da realidade de grandes centros econômicos, como Rio de Janeiro e São
Paulo, pautada no fenômeno da crescente quantidade de construções de condomínios fechados, merece
destaque o RMS 18107/RJ,
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de relatoria do Min. Herman Benjamin. No caso, discutiu-se a validade da Lei
Municipal 3. 317/2001, que reconheceu como logradouro público via que, segundo o impetrante, seria
particular, pois pertencente a condomínio fechado.
A discussão suscitada reflete a realidade de muitas cidades brasileiras, em que os moradores
frequentemente se isolam em condomínios por medo, fechando vias de acesso, com grades metálicas e
seguranças particulares. Todavia, tal prática, extremamente comum, não tem o condão de alterar a
natureza (de pública para privada) ou mesmo impedir o acesso à coletividade, ainda que diante da
conjunção de vontade de várias pessoas qu e na região residem. No momento em qu e o ente particular
parcela o imóvel e corta vias de acesso, a á rea pas sa a se inserir n a malha urb ana, exercendo funç ão
primordial à vida em sociedade. De acordo com o precedente, o que antes era integralmente privado
torna-se parcialmente público, já que os logradouros necessários ao trânsito dos moradores são afetados
ao uso comum do povo (art. 4º, I e IV, da Lei 6.766/1979).
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STJ, 2ª T., RMS 18107/RJ, Rel Min. Herman Benjamin, julg. 25.8.2009.

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