A contribuição teórica de Carl Schmitt para o direito nazista/Carl Schmitt's teorethical contribution to Nazy law.

AutorCarvalho, Claudia Paiva

Introdução

Em janeiro de 1933, um dia após a nomeação de Hitler para o cargo de chanceler da República de Weimar, na Alemanha, Carl Schmitt deu uma entrevista no rádio para Veit Rosskopf, na qual disse: "Eu sou um teórico", e complementou: "um puro acadêmico e nada mais que um acadêmico" (BENDERSKY, 1983: 201) (1). Também em 1933, após uma série de expurgos realizados por Hitler em universidades alemãs, Schmitt se filiaria ao Partido nazista e se tornaria professor da Universidade de Berlim, em substituição a Hermann Heller, cargo que ocupou até o término da Segunda Guerra Mundial. No mesmo ano, Schmitt foi nomeado Conselheiro de Estado para a Prússia e se tornou presidente da União de Juristas Nacional-Socialistas.

Não é possÃÂvel analisar a obra de Schmitt durante o perÃÂodo nazista descolada do seu contexto e da sua atividade polÃÂtica e profissional como jurista. Carl Schmitt é conhecido como um grande crÃÂtico da ordem jurÃÂdica liberal e do normativismo formal e abstrato a ela subjacente, que haviam se tornado dominantes no século XIX. Durante os anos de Weimar, dedicou-se a expor as falhas e as inconsistências do liberalismo e a buscar modelos alternativos capazes de equacionar as crises enfrentadas pelo Estado alemão. Essas crises envolviam, para Schmitt, os riscos de fragmentação polÃÂtica e de paralisia decisória do Parlamento, que estaria dominado pela atuação de grupos de interesse, fruto do pluralismo social de uma democracia de massas. (2) Nesse sentido, as escolhas polÃÂticas de Schmitt, durante a República de Weimar e após a sua queda, estão ligadas aos ataques que ele dirigia ao pensamento liberal (SCHEUERMAN, 1999: 17).

Na medida em que perspectivas teóricas contemporâneas, situadas politicamente àesquerda, buscam reativar concepções schmittianas para fundamentar crÃÂticas àdemocracia liberal e seus limites (3), é preciso reforçar a necessidade de compreender a obra de Carl Schmitt no seu tempo e a partir de seus objetivos e conflitos.

É valiosa, a esse respeito, a observação de Gilberto Bercovici:

O grande problema dessa "recepção" de Schmitt é a tendência em amenizar ou ignorar sua atividade polÃÂtica anterior e, especialmente, em meio ao nazismo. Não se pode ignorar o fato de que sua obra foi toda elaborada visando justificar certas correntes polÃÂtico-ideológicas, bem como as suas próprias posições em relação àturbulenta conjuntura histórica e polÃÂtica da Alemanha do século XX. Isso sem esquecer que, como jurista, Carl Schmitt era voltado também para a solução de problemas concretos e conjunturais, não podendo ter sua obra compreendida isoladamente da sua atuação polÃÂtica e pessoal no decorrer de sua vida (BERCOVICI, 2002: 193). Levando em conta essa advertência metodológica, o objetivo do presente artigo é analisar a contribuição teórica de Carl Schmitt para o direito nacional-socialista, com foco no chamado pensamento da ordem concreta. Desenvolvido a partir da influência institucionalista que Schmitt recebeu de autores como Maurice Hauriou e Santi Romano, o pensamento da ordem concreta é apresentado por ele como uma terceira via em relação ao normativisimo e ao decisionismo e pretende servir de base para a superação do modelo liberal e para a construção da nova ordem jurÃÂdica nazista.

O tema suscita questões controversas que são objeto de debates ainda atuais sobre a obra de Carl Schmitt. Peter Caldwell demonstra que interpretações contraditórias sobre o autor muitas vezes se baseiam nas mesmas fontes para sustentar argumentos opostos, que caracterizam Schmitt como: um tÃÂpico liberal do século XIX, um fascista, um revolucionário conservador, um bom crÃÂtico de Marx, um antissemita ou um brilhante teórico da democracia (CALDWEL, 2005: 357-358).

Mais especificamente, os comentaristas de Schmitt discutem se a sua conversão ao nazismo e ao institucionalismo representaria uma ruptura com seu pensamento anterior, particularmente com o decisionismo. Ingeborg Maus chama atenção para o fato de que o próprio Schmitt viria a defender a ideia de que não haveria continuidade entre o seu pensamento antes e depois de 1933. Com isso, no entanto, buscava se eximir de responsabilidade pelas posições adotadas, ao sugerir que sua teoria seria mero reflexo da situação constitucional, primeiro de Weimar, e depois do Nacional-Socialismo (MAUS, 1997: 128).

Outra controvérsia divide interpretações a respeito da própria adesão de Schmitt ao nazismo: alguns autores, como Joseph Bendersky e George Schwab, entendem que ela decorreu fundamentalmente do seu oportunismo polÃÂtico; outros, a exemplo de William E. Scheuerman, consideram que tal escolha polÃÂtica era consistente com as linhas doutrinárias já defendidas pelo jurista.

Essa discussão também impacta no tratamento dado àprodução de Schmitt durante o perÃÂodo nacional-socialista, que pode se orientar, por um lado, para desconsiderá-la como mero artifÃÂcio de legitimação do Terceiro Reich ou, por outro, para reconhecer nela um valor teórico merecedor de uma investigação séria, ainda que não possa ser dissociada dos objetivos de justificação e de sustentação jurÃÂdica de um domÃÂnio polÃÂtico totalitário. Uma terceira chave de leitura propõe, ainda, que Schmitt teria se movido pelo intuito de exercer uma influência sobre Hitler e, com isso, moderar a radicalidade das transformações nazistas àordem jurÃÂdica e polÃÂtica alemã.

Partindo desses questionamentos, busco analisar como o chamado pensamento da ordem concreta de Schmitt contribuiu para as transformações nazistas do direito alemão. O texto está estruturado em três partes: a primeira se dedica a traçar a influência institucionalista e a adesão de Schmitt ao nazismo; a segunda parte aborda a formulação do jurista sobre o pensamento da ordem concreta e sua relação com o decisionismo; por fim, o terceiro tópico trata dos métodos de interpretação apresentados por Schmitt a partir da concepção do direito como ordem concreta e tendo em vista a nazificação do sistema jurÃÂdico alemão.

  1. A influência institucionalista e a adesão de Schmitt ao nazismo

    No contexto da crise final da República de Weimar, até 1933, Schmitt não apoiava a ascensão nazista ao poder, mas defendia, em outra linha, uma solução autoritária de direita que envolvia o fortalecimento do presidente do Reich e a manutenção das instituições. Após o golpe do Estado alemão contra a Prússia, em 1932, Schmitt participou ao lado do governo do processo que analisava a legitimidade da intervenção estatal, atuando no sentido de justificar as medidas de exceção que tinham sido adotadas. Não obstante, ainda que manifestasse até então a preferência por uma via mais conservadora para enfrentar a crise, tão logo o Partido Nacional-Socialista ascendeu ao poder (4), Schmitt se tornou um filiado e ativo colaborador. Schmitt também contou com influentes "padrinhos polÃÂticos" que ajudaram na sua projeção como jurista e na sua indicação para cargos públicos, a exemplo de Johannes Popitz, então Ministro de Finanças da Prússia, Hans Frank, que era Secretário de Justiça no Terceiro Reich, e Hermann Göring, que ocupava o posto de Ministro-Presidente da Prússia (DRAGHICI, 2001: XII).

    A publicação de Estado, Movimento, Povo em 1933 constitui o marco na produção de Schmitt que consolida a sua adesão ao nacional-socialismo. De acordo com Bendersky, o texto é fruto das ideias apresentadas por Schmitt em palestras e em artigos escritos durante o verão e o outono de 1933 (BENDERSKY, 2004: 18). Daàse percebe o propósito de intervenção polÃÂtica da obra, voltada não apenas para o mundo acadêmico, mas para alcançar um público mais amplo. Alguns aspectos do estilo da escrita também chamam atenção na obra. No prefácio àedição inglesa, Simona Draghici caracteriza o texto como "um exercÃÂcio na técnica de persuasão de massa" e acrescenta:

    A fórmula técnica por trás deste ensaio pode ser descrita brevemente como: a. repetição contÃÂnua para alcançar a saturação, para além do teto de tolerância esperado da audiência; b. linguagem simples para que o homem comum (...) pudesse entender, e ainda; c. o conteúdo deveria ser interessante o suficiente para que todos dessem uma atenção cuidadosa (DRAGHICI, 2001: VI) (5) A obra faz diversas referências e citações a personalidades do regime, como o "Dr." Hans Frank, e incorpora conceitos nazistas como identidade étnica e liderança, raça e povo. Ao caracterizar a situação constitucional daquele momento, Schmitt afirma que a Constituição de Weimar não estava mais em vigor e que todo o direito público do Estado alemão tinha passado a se estruturar em suas próprias bases. Em suas palavras: "o texto da Constituição de Weimar não pode ser considerado como continuamente válido nas condições do novo direito público e constitucional do Estado Nacional-Socialista" (SCHMITT, 1933: 5). Para Schmitt, a chamada Lei Habilitante ou Lei de Concessão de Plenos Poderes de 1933 tinha fundado uma nova ordem jurÃÂdica e polÃÂtica que reconhecia Hitler como o lÃÂder do povo alemão e substituÃÂa a divisão polÃÂtica pluralista de Weimar pelo formato de um partido único.

    A ideia central do texto é apresentar a estrutura triádica da unidade polÃÂtica alemã, organizada entre Estado...

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