Controle administrativo do uso dos recursos hídricos

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CONtrOLe aDMINIStratIVO DO
USO DOS reCUrSOS HÍDrICOS
12.1 PODER DE POLÍCIA DAS ÁGUAS
Com base na caracterização dos recursos hídricos, dos princípios aplicáveis
e da análise das principais formas de sua utilização, podem-se extrair dois fatores
preponderantes, que traduzem a situação das águas no Brasil:
1. a existência de conitos de interesse sobre a utilização dos recursos hí-
dricos, em função do desequilíbrio entre a demanda e a disponibilidade;
2. o risco de danos pela utilização inadequada, o que compromete os aspec-
tos de quantidade e qualidade e o próprio meio ambiente, cujo equilíbrio
passa necessariamente pela despoluição das águas, tornando-as capazes
de abrigar os ecossistemas aquáticos e terrestres e garantir a s egurança
hídrica;
3. a aceleração das mudanças do clima, alterando o ciclo da água e tornando
mais recorrentes os eventos críticos relacionados com esse bem.
As políticas de recursos hídricos indicam algumas soluções para esses pro-
blemas, em que o planejamento tem por objeto básico ordenar a utilização da
água, evitando ou minimizando os conitos de interesse, a poluição, a escassez
e demais eventos críticos, assim como a proteção do meio ambiente. O outro
sustentáculo das políticas – controle administrativo da utilização das águas –
refere-se ao exercício de atividades administrativas, com vista no controle do
uso, evitando danos pela má utilização da água, que possam comprometer a
segurança hídrica, para as atuais e futuras gerações.
Segundo Laudelino Freire, o termo controle advém do francês contrôle e
refere-se ao ato de dirigir qualquer serviço, vericando-o, examinando-o, scali-
zando-o.1 Em fase anterior à vericação e à scalização, o sentido de controle, em
recursos hídricos, refere-se fundamentalmente aos instrumentos juridicamente
1. FREIRE, Laudelino. Grande... Op. cit. p. 1568.
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DIREITO DE ÁGUAS • Maria Luiza Machado Granziera
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estabelecidos para manifestar a posição, do poder público, sobre a possibilidade
ou não de autorizar o uso do recurso hídrico em casos concretos, com base na lei
e em decisões emanadas dos órgãos componentes do sistema de gerenciamento.
Controlar o uso signica, então, manifestar-se favoravelmente ou não sobre a
possibilidade de uso privativo e, em caso positivo, xar os respectivos limites
e condições.
Não se trata do controle que se faz aos atos da Administração Pública, con-
forme dene Manuel María Diez, para quem o controle administrativo é o que se
desenvolve no âmbito da administração, e se dirige contra todos os atos que ela dite
ou execute.2 O objeto deste Capítulo é o controle que a Administração Pública
– órgãos e entidades gestoras de recursos hídricos – efetua sobre a utilização da
água, incluídas as decisões administrativas, e não o controle dessas decisões, à
luz da legalidade.
Evidentemente, a Administração Pública está adstrita ao controle interno
e externo. Como se disse, não é esse o sentido do controle, objeto deste Capítulo.
Tratando-se do poder de polícia, o controle refere-se às decisões sobre os usos,
assim como à vericação da observância de normas e da aplicação de penalidades
aos infratores.
emístocles Brandão Cavalcanti ensina que o poder de polícia constitui
limitação à liberdade individual, mas tem por m assegurar esta própria liberdade
e os direitos essenciais do homem.3 Esse conceito coaduna-se perfeitamente com o
poder de polícia das águas, na medida em que o controle do uso deve assegurar
a sua qualidade e quantidade.
Para Celso Antônio Bandeira de Mello,
pode-se denir polícia administrativa como a atividade da Administração Pública, expressa em
atos normativos ou concretos, de condicionar, com fundamento em sua supremacia geral e na
forma da lei, a liberdade e a propriedade dos indivíduos, mediante ação ora scalizadora, ora
preventiva, ora repressiva, impondo coercivamente aos particulares um dever de abstenção
(non facere) a m de conformar-lhes os comportamentos aos interesses sociais consagrados
no sistema normativo.4
No ordenamento jurídico pátrio, o art. 78 do Código Tributário Nacional
estabelece o conceito de poder de polícia:
2. Manual de derecho administrativo. Buenos Aires: Plus Ultra, 1979, t. 2, p. 472.
3. Tratado de direito administrativo. 3. ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Freitas Bastos, 1956. v. 3.
4. Curso de direito administrativo. 30. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, sobre a possibilidade ou não de se
utilizar o recurso hídrico em casos concretos. p. 853.
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12 • CoNtrolE AdmINIStrAtIVo do uSo doS rECurSoS HÍdrICoS
Art. 78. Poder de polícia é a atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando
direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse
público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e
do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização
do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais
ou coletivos.
Muitas são as denições expostas, que se complementam e convergem. A
nalidade do poder de polícia, assim como sua importância no ordenamento
jurídico, são fatores que variaram ao longo da evolução do Estado e do próprio
direito.
Interessa-nos enfocar o poder de polícia no sentido moderno dessa ex-
pressão, produto de evoluç ão que ainda não se cristalizou, e que se reporta não
apenas à garantia de segurança, tranquilidade e salubridade pública, mas ao
reconhecimento do Estado em um papel mais amplo, na promoção do bem-estar
geral, xando não apenas a ordem pública, mas também a ordem e conômic a e
sobretudo social, pois o acesso à água e ao esgotamento sanitário são direitos
humanos declarados pela ONU.
O enfoque há de ser ainda um pouco diferente, pois não cabe, aqui, tratar
do poder de polícia como atividade estatal que limita as liberdades individuais,
e que em certos momentos da história foi condenado, em favor da doutrina do
due process of law, instrumento da liberdade individual.
Ao contrário, o poder de polícia das águas consiste no efetivo controle
da utilização de um bem cuja preservação é condição básica da existência de
vida no planeta. Ao restringir as atividades individuais, não se está pondo
em perigo a liberdade humana, mas propiciando justamente melhores con-
dições de vida.
A primeira indagação que se coloca, na busca do sentido do poder de po-
lícia em recursos hídricos, consiste na vericação de qual princípio de direito
administrativo lhe dá base, ou seja, qual o fundamento dessa atividade, ínsita
ao Estado.
O princípio da supremacia do interesse público sobre o particular consti-
tui a essência do exercício do poder de polícia, em que a Administração Pública
controla as atividades dos particulares, com a nalidade de atender ao interesse
público, o que, no caso dos recursos hídricos, poderia ser traduzido, grosso modo,
pela proteção das águas, evitando-se a escassez e a poluição e garantindo-se o
uso para as atuais e futuras gerações, assim como a proteção dos ecossistemas
aquáticos e terrestres que dependem das águas.
Pierre Wigny arma que o
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