Controle social e resolução de conflitos em um território Kaingang: estudo sobre a cadeia indígena/Social control and conflict resolution in a Kaingang territory: a study on the indigenous jail.

AutorAlves, Marcelo Mayora
  1. Introdução--os caminhos da pesquisa e apontamentos metodológicos

    Este estudo apresenta os resultados preliminares de pesquisa cujo objetivo é investigar o controle social e a resolução de conflitos em um território Kaingang, tendo como problema central a compreensão da gênese e dos atuais sentidos punitivos da cadeia indÃÂgena utilizada por este povo no contexto interno do território em que habita.

    Resulta diretamente das polÃÂticas de diversificação do corpo discente das universidades. Foi na sala de aula que os coautores se encontraram, um professor da disciplina de criminologia do Curso de Direito da Universidade Federal do Pampa, e um discente que foi estudar em cidade distante mais de 600 km da terra indÃÂgena onde nasceu e cresceu. Foi ao falar do conceito de controle social que o professor resolveu perguntar para o estudante de que modo os conflitos eram resolvidos em sua aldeia e foi então que pôde descobrir que naquela comunidade havia uma cadeia. E a partir daàa turma teve a chance de acompanhar o olhar contra-antropológico que o discente emprestou ao sistema penal estatal brasileiro e realizar o exercÃÂcio de estranhamento dos rituais do direito penal moderno, aprendidos ao longo do ensino jurÃÂdico.

    Desde então começou não apenas a pesquisa, mas o diálogo e o aprendizado mútuo. À investigação, que passou a ser conduzida pelo Núcleo do Pampa de Criminologia (Grupo de pesquisa/CNPq), somou-se a terceira coautora. Os frutos da pesquisa, até agora, foram trabalhos de iniciação cientÃÂfica, um trabalho de conclusão de curso (ANTÔNIO, 2023) e inúmeros eventos e participações do discente indÃÂgena nas atividades de ensino, enriquecendo-as sobremaneira. Por outro lado, o estudo cresceu e transformou-se em pesquisa de doutorado que está sendo desenvolvida pela coautora deste artigo.

    Buscaremos construir a coautoria não apenas desde a primeira pessoa do plural, mas, sobretudo, deixando àvista os termos do diálogo e a polifonia do encontro pedagógico, a roda de conversa na qual estamos envolvidos.

    Do ponto de vista metodológico, algumas considerações iniciais são importantes. Quanto àdimensão empÃÂrica, a pesquisa começou a partir da escuta da narrativa oral do discente indÃÂgena sobre as práticas punitivas adotadas no território que habita. Depois de um perÃÂodo, foi realizada uma incursão àterra indÃÂgena, na qual os pesquisadores-professores foram recepcionados pelo discente indÃÂgena e tiveram a oportunidade de conhecer preliminarmente o contexto local e a própria cadeia, bem como em conversar, juntamente com o coautor, com membros da comunidade (incluindo aqueles que ocupam postos na estrutura polÃÂtica) sobre o tema das práticas punitivas. Pretende-se, na sequência, que o estudo se desenvolva a partir dos métodos etnográfico e da história oral e de acordo com os interesses da comunidade indÃÂgena.

    Nessa empreitada, estivemos vigilantes quanto àdimensão epistemológica e equipados com alguns conceitos (ferramentas) importantes. O primeiro é o desenvolvido por Rita Segato, de antropologia por demanda, que deve ser "interpelada, solicitada, demandada pelos povos que durante um século lhe serviram de objeto" (SEGATO, 2021, p. 17), quer dizer, uma disciplina que deve permanecer "disponÃÂvel para as demandas de suas e de seus estudados" (SEGATO, 2021, p. 166).

    Esta ideia vai ao encontro da noção de "pacto etnográfico", desenvolvida por Bruce Albert e Davi Kopenawa na obra "A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami" (2015). Para o autor, o pacto etnográfico consiste na relação que se estabelece entre o pesquisador e os "nativos", da qual deriva, como "contrapartida da doação de saberes, um horizonte de comprometimento de longo prazo" (ALBERT; KOPENAWA, 2015, p. 522). Ou seja, ao estudarmos a temática em questão, com o auxÃÂlio da comunidade Kaingang, nos comprometemos, sem perder de vista a curiosidade intelectual e o rigor descritivo, com as suas demandas, desafios e lutas. Conforme Albert, o "etnógrafo que acredita estar 'colhendo dados' está sendo reeducado, por aqueles que aceitaram sua presença, para servir de intérprete de sua causa" (ALBERT; KOPENAWA, 2015, p. 522).

    A citação de Albert e Kopenawa resume o processo que aqui estamos narrando. O diálogo intercultural que vem sendo travado produziu efeitos nos planos individuais e institucional. A relação estabelecida entre os pesquisadores, por um lado, constitui importante subsÃÂdio pedagógico para a formação do coautor-indÃÂgena, e por outro, "reeducou" e responsabilizou os outros coautores. Na dimensão institucional, a pesquisa permitiu a efetivação orgânica da integração entre ensino e pesquisa, na medida em que o estudo vem sendo apresentado e discutido em diversas disciplinas do curso de Direito da Universidade Federal do Pampa, como criminologia, antropologia jurÃÂdica, sociologia e história do direito.

  2. Ainda como introdução--delimitação do estudo

    No Brasil atualmente convivem aproximadamente trezentos e cinco povos indÃÂgenas, com usos, costumes, tradições, lÃÂnguas e organizações sociais, polÃÂticas e jurÃÂdicas plurais. Cada qual possui uma história especÃÂfica, marcada de modo inexorável pela invasão europeia e pelas relações coloniais e estatais que tiveram inÃÂcio a partir de então (1).

    Desta maneira, as formas de organização social, polÃÂtica e jurÃÂdica e os consequentes métodos de controle social e resolução de conflitos utilizados por estas sociedades tradicionais são incontáveis e não podem ser tratados de modo unificado, dado o risco de equÃÂvocos e simplificações.

    Ademais, é necessário separar analiticamente a mirada sobre as práticas punitivas encontradas por ocasião dos primeiros encontros entre os colonizadores e os povos originários - cujas produções são fundadas em dados empÃÂricos que resultaram da literatura dos assim chamados "relatos de viajantes (2) " - do estudo sobre as práticas punitivas que passaram a ser adotadas após o contato colonizador e que se mantém até hoje, nos quadros da história de cada povo, marcadas pela relação entre os povos originários e as polÃÂticas indigenistas.

    Este introito é necessário para desde logo explicarmos que este estudo está interessado nas práticas punitivas atualmente adotadas por uma comunidade territorialmente delimitada e habitada por um povo especÃÂfico: os Kaingang (3). Ou seja, não se pretende estudar de modo geral as formas punitivas dos "povos indÃÂgenas do Brasil", mas os métodos de controle social, de resolução de conflitos e de punição de uma das inúmeras comunidades Kaingang. Proceder de outro modo resultaria em uma imprópria universalização, diante da infinidade de situações territoriais, sociais e polÃÂticas em que vivem os povos indÃÂgenas do Brasil, que resultam em distintos arranjos polÃÂtico-institucionais. O artigo começará por trazer aportes jurÃÂdicos ao tema da autonomia penal indÃÂgena. Na sequência, ingressará no tema da punição no contexto do povo Kaingang, primeiro do ponto de vista histórico, buscando compreender a gênese da cadeia indÃÂgena, para depois investigar os sentidos dos métodos de controle social e resolução de conflitos, notadamente das punições, atualmente utilizados pela comunidade em questão.

  3. A autonomia penal indÃÂgena--aportes jurÃÂdicos

    Os povos indÃÂgenas podem gerir seus conflitos segundo suas normas internas? As soluções que adotam têm validade do ponto de vista do direito estatal? As lideranças que executam punições praticam crimes segundo a lei penal brasileira? Estas perguntas eram muito comuns na sala de aula e nas ocasiões em que apresentamos a pesquisa. Fundamental, portanto, tratarmos da legitimidade jurÃÂdica da punição indÃÂgena, nos termos das "leis do homem branco".

    Conforme Rita Segato, "o Brasil está muito longe de um efetivo pluralismo institucional e ainda mais distante da elaboração de pautas de articulação entre o direito estatal e os direitos próprios, como ocorre na BolÃÂvia e na Colômbia" (SEGATO, 2021, p. 168). Para a autora, os próprios povos indÃÂgenas "não demandam do Estado a devolução do exercÃÂcio da justiça com o mesmo empenho com que demandam a identificação de seus territórios", e, por outro lado, "nem têm nÃÂtido o que significaria essa restituição no processo de reconstrução de suas autonomias" (SEGATO, 2021, p. 168). De acordo com a antropóloga:

    (...) esses territórios não se comportam como verdadeiras jurisdições; a demarcação de terras não foi acompanhada por um processo equivalente de reflexão e reconstrução das instâncias de resolução de conflitos, graus crescentes de autonomia institucional no exercÃÂcio da justiça própria e recuperação paulatina da prática processual (SEGATO, 2021, p. 269). Portanto, no caso brasileiro é questionável a existência de uma jurisdição penal indÃÂgena, tal como ocorre na BolÃÂvia e na Colômbia (4). Contudo, as Convenções internacionais ratificadas pelo Brasil, a Constituição Federal e a legislação apontam para a existência do que André da Rocha Ferreira nominou autonomia penal indÃÂgena, "pois as comunidades indÃÂgenas não têm autoridade jurisdicional, mas apenas um poder de composição própria, que pode ser revertido pela jurisdição do Estado" (FERREIRA, 2017, p. 82). Ou seja, as comunidades podem resolver seus conflitos segundo seus métodos punitivos próprios, mas...

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