Controvérsias (e soluções) do financiamento 'DIP' na Lei 14.112/2020

AutorThiago Dias Costa
Páginas103-123
CONTROVÉRSIAS (E SOLUÇÕES) DO
FINANCIAMENTO “DIP” NA LEI 14.112/2020
Thiago Dias Costa
Doutorando, Mestre (Direito Comercial) e Bacharel pela Universidade de São Paulo.
Especialista em Direito Empresarial pelo CEU-IICS Escola de Direito. Visiting Scholar
na Columbia University Law School (2017). Vice-Presidente da Comissão de Falência
e Recuperação Judicial da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo – Subseção do
Tatuapé. Membro da Comissão Permanente de Direito Falimentar e Recuperacional do
Instituto dos Advogados de São Paulo – IASP. Membro Associado ao TMA – Turnaround
Management Association Brasil, ao INSOL International, e ao American Bankruptcy
Institute. Sócio do departamento de Restruturação e Insolvência do Felsberg Advogados.
Sumário: 1. Introdução – 2. O nanciamento DIP e sua importância – 3. Benefícios oferecidos
ao nanciamento DIP; 3.1 A “superprioridade”; 3.2 A “imutabilidade”; 3.3 A constituição
de garantias subordinadas – 4. Requisitos para a caracterização do nanciamento DIP; 4.1
Restrição à recuperação judicial; 4.2 Autorização judicial vs. autorização dos credores; 4.3 A
denição de “contratos de nanciamento”; 4.4 Exigência de garantias sobre ativo não circu-
lante; 4.5 Finalidade especíca – 5. Outros aspectos importantes do nanciamento DIP; 5.1
Duas classes de nanciamento? Arts. 67 e 69-A; 5.2 Juros, garantias, e a proteção ao “valor
efetivamente entregue” – 6. Conclusão – 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A experiência demonstra que a legislação falimentar brasileira (ou, em denominação
mais moderna e abrangente, a legislação da crise empresarial1) tem alguma tradição em
caminhar a passos lentos. Ou, pelo menos, mais lentos do que impõe a marcha usual
de evolução da atividade empresarial e dos demais aspectos relacionados ao Direito
da Empresa (como o Direito Societário, o Direito do Mercado de Capitais etc.). Nosso
diploma falimentar anterior,2 por exemplo, permaneceu em vigor por mais de sessenta
anos, durante boa parte dos quais foi alvo de críticas, que desde cedo indicavam sua
desconexão com a realidade comercial de seu tempo e a necessidade de sua reforma.3
Algo semelhante, guardadas as devidas proporções, sucedeu com o diploma legal
atual que regula o Direito da Empresa em Crise – a Lei 11.101/2005 (“LRF”). Baseada
em boa medida nos preceitos do diploma de insolvência norte-americano (o American
Bankruptcy Code),4 e vista pela maioria dos operadores do direito como uma lei moderna
1. Optamos pela adoção da expressão “Direito da Empresa em Crise”, inspirada no trabalho de Angel Rojo Fernan-
dez-Rio (ROJO FERNANDEZ-RIO, Angel Jose. El estado de crisis económica, in La Reforma del Derecho de Quiebra.
Madri: Civitas, 1982, p. 127).
3. Vide FERREIRA, Waldemar. Tratado de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1965, v. 14, p. 50.
4. Conforme abordamos em COSTA, Thiago Dias. Recuperação judicial e igualdade entre credores. Rio de Janeiro:
Forense, 2018, p. 76.
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e alinhada com as mais recentes tendências mundiais, não demorou muito para que f‌icasse
evidente a necessidade de implementação de reformas em diversos aspectos importantes
da legislação. Mesmo assim, a reforma esperada só veio depois de mais de quinze anos de
vigência da lei, e mais de quatro anos após a constituição formal dos primeiros grupos de
trabalho incumbidos de discutir essa reforma. Há que se destacar, no entanto, a boa atu-
ação da doutrina e jurisprudência nacionais durante esse período, que corajosamente se
incumbiram da tarefa de suprir lacunas e sanar contradições sistêmicas na LRF – ainda que
suas conclusões, por vezes, destoassem de maneira bastante clara do texto legal em vigor.5
Fato é que, após insistente clamor dos operadores, da doutrina e da jurisprudência,
a reforma legal veio – e, por mais que não seja perfeita, certamente não decepcionou.
A Lei 14.112/2020 alterou sistematicamente diversos aspectos da LRF com o objetivo
de modernizá-la e de integrar a ela muitas das regras que já vinham sendo engendradas
pela jurisprudência. Além disso, foram integrados à LRF alguns elementos novos, cuja
ausência já era sentida há bastante tempo pelos empresários e operadores do direito. Um
desses elementos novos é, justamente, o que diz respeito às regras para o f‌inanciamento
das empresas em recuperação, também conhecido como DIP Financing – ou, em parcial
vernáculo, “Financiamento DIP”.6
O objetivo deste artigo é o de apresentar alguns dos principais aspectos jurídicos
das regras de f‌inanciamento DIP introduzidas pela Lei 14.112/2020 e, de forma absolu-
tamente não exaustiva, indicar potenciais lacunas e controvérsias – apontando caminhos
para sua solução. Naturalmente, a visão aqui exposta não será apenas analítica, mas
crítica, com o objetivo de indicar alternativas efetivas à solução dos pontos de incerteza
identif‌icados, tanto de lege lata quando de lege ferenda.
Não pretendemos de forma nenhuma exaurir a discussão sobre a matéria em tão
breve artigo, até porque já existem obras mais amplas e de referência sobre o tema,7 mas
entendemos que a análise de múltiplos pontos de vista é sempre útil para identif‌icar e
sanar potenciais problemas. Nosso objetivo, para longe de uma crítica vazia à disciplina
legal (que, como já dito, não decepciona), é o de reforçar a segurança jurídica e estimu-
lar a utilização das ferramentas de proteção aos f‌inanciadores, tão importantes para o
sucesso de qualquer atividade econômica.
2. O FINANCIAMENTO DIP E SUA IMPORTÂNCIA
Parece despiciendo, a essa altura, tecermos considerações sobre a importância
do crédito como fator de desenvolvimento econômico e social, principalmente em um
5. Ressalta-se, por exemplo, a admissão quase que unânime pela jurisprudência nacional da possibilidade de pror-
rogação excepcional do período de suspensão das execuções contra o devedor em recuperação (stay period), nada
obstante a antiga redação do art. 6º, § 4º, da Lei 11.101/2005 em sua redação original declarasse expressamente
que o stay period “em nenhuma hipótese” excederia o prazo “improrrogável” de 180 dias.
6. Derivada da expressão “Debtor-in-possession”, usada para denominar o devedor insolvente que, em vez de ser
afastado e substituído por um representante judicial (como ocorre na falência), permanece em poder de seus
próprios ativos e na condução da atividade empresarial (como ocorre na recuperação judicial).
7. Nesse sentido, vide DIAS, Leonardo Adriano Ribeiro. Financiamento na recuperação judicial e na falência, 2. ed.
Rio de Janeiro: Forense, 2022.

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