Reforma da Lei 11.101/2005 - Análise dos primeiros casos de insolvência transnacional

AutorArthur Cassemiro Moura de Almeida
Páginas13-29
REFORMA DA LEI 11.101/2005
ANÁLISE DOS PRIMEIROS CASOS
DE INSOLVÊNCIA TRANSNACIONAL
Arthur Cassemiro Moura de Almeida
Mestrando em Direito Comercial na Universidade de São Paulo (USP). LLM em Direito
dos Mercados Financeiro e de Capitais pelo Instituto de Ensino e Pesquisa (INSPER).
Membro associado da TMA Brasil e da INSOL. Advogado e Senior Legal Analyst na
Debtwire.
Sumário: 1. Introdução – 2. Caso Latam Airlines – legitimidade para buscar a cooperação
internacional e intervenção do MP nos processos de insolvência transnacional – 2.1 Ilegiti-
midade ativa e falta de interesse de agir – 2.2 Atuação do MP nos processos de insolvência
transnacional – 3. Caso PROSAFE – autonomia patrimonial e centro de interesses principais
das sociedades integrantes do grupo econômico – 3.1 Extensão dos efeitos das decisões pro-
tetivas proferidas pelo juízo estrangeiro – 3.2 Denição do centro de interesses principais – 4.
Notas conclusivas – 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação de Empresas – LRE), que regula os procedi-
mentos de recuperação judicial (RJ), recuperação extrajudicial e falência do empresário e
da sociedade empresária, foi signif‌icativamente alterada pela Lei 14.112/2020. As novas
normas foram aprovadas em dezembro de 2020 e entraram em vigor no dia 23 de janeiro
de 2021, após um período de 30 dias de vacatio legis.
Merecem destaque, dentre outras relevantes modif‌icações, as novas regras relativas
ao f‌inanciamento pós-concursal, a possibilidade de apresentação de planos alternati-
vos por credores, a disciplina das conciliações e mediações antecedentes e incidentais
aos processos de reorganização, a legitimidade do produtor rural para pedidos de RJ, a
insolvência de grupos empresariais e a repactuação de créditos tributários. A crise de
insolvência que justif‌ica o ajuizamento de um pedido de RJ foi conceituada, nos termos
do artigo 51, § 6º, I da LRE, como a “insuf‌iciência de recursos f‌inanceiros e patrimoniais
com liquidez suf‌iciente para saldar as dívidas.”
Tão importantes quanto as novidades acima mencionadas são as novas disposições
sobre o tratamento da insolvência transnacional, ou seja, das crises de insolvência que
envolvem ativos, estabelecimentos ou credores situados em diferentes países.1 Trata-se
1. “Insolvência envolvendo credores estrangeiros gera perplexidades, tanto na teoria quanto na prática, em relação
às diferenças de tratamento. Nesse contexto, dilemas ainda maiores podem advir de insolvências em que não
apenas os credores, mas também os ativos do devedor, estão espalhados por muitos países. Af‌inal, a falência é, por
sua própria natureza, um processo de execução coletiva. Ativos, créditos e dívidas – em suma, toda a vida econô-
ARThUR CASSEMIRO MOURA DE ALMEIDA
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de uma das principais e mais aguardadas novidades decorrentes da reforma legislativa,
que preencheu um dos grandes vácuos2 até então existentes no direito das empresas em
crise brasileiro.
A versão atualizada da LRE passou a contar com o Capítulo VI-A, totalmente dedi-
cado aos processos de insolvência transnacional. Esse capítulo foi elaborado com base na
Lei Modelo da UNCITRAL3 e nele se inserem os artigos 167-A a 167-Y, os quais, por seu
turno, estão distribuídos em cinco Seções. As Seções I e II trazem as disposições gerais
e as regras referentes ao acesso direto, e as Seções III, IV e V dispõem, respectivamente,
sobre (a) o reconhecimento de processos estrangeiros, (b) a cooperação com autoridades
e representantes estrangeiros, e (c) a disciplina dos processos concorrentes.
No interregno compreendido entre o início da vigência das novas regras e o pri-
meiro trimestre de 2022,4 o Poder Judiciário Brasileiro teve a oportunidade de julgar
dois casos com base nas novas regras de insolvência transnacional, quais sejam, o caso
“Latam Airlines” e o caso “Prosafe”. O primeiro caso foi ajuizado apenas dois meses
após o advento das novas normas, perante uma das varas especializadas de São Paulo, e
envolveu a reestruturação f‌inanceira da referida companhia aérea. Pouco tempo depois,
o grupo econômico Prosafe, atuante na área de prestação de serviços relativos a óleo e
gás, deu entrada em dois processos de insolvência transnacional perante uma das varas
empresariais do Rio de Janeiro, buscando medidas de proteção e assistência por meio
da cooperação internacional.
A relevância da matéria examinada no presente artigo resta evidenciada, dentre
outros motivos, pela velocidade com que os primeiros casos de insolvência transna-
cional foram submetidos ao Judiciário, logo após a reforma da LRE. Nesse sentido, os
especialistas Souza Jr. e Becue ressaltam que os precedentes estabelecidos no julgamento
desses casos representam “salutar mudança na postura de nosso país frente à crise de
multinacionais”,5 não obstante alguns aspectos das decisões mereçam uma análise mais
aprofundada.
O presente artigo se destina justamente a essa tarefa. Pretende-se examinar os
fundamentos e o conteúdo jurídico dos pedidos e das decisões proferidas nos casos
ora mencionados, em cotejo não apenas com as novas disposições legais, mas também
com a doutrina especializada e a jurisprudência internacional sobre a matéria. Como
resultado, busca-se aferir de que maneira foram aplicadas pela primeira vez, em casos
mica de um devedor – estão em jogo em um processo de insolvência. Se todos os ativos, dívidas e créditos estão
concentrados em um país, um processo de insolvência local, sob o comando de um único tribunal, é suf‌iciente
para f‌ins de cobrança e distribuição. Mas o que acontece, ou o que deveria acontecer, nos casos em que muitos
países estão envolvidos, é uma questão intrigante” (CAMPANA FILHO, Paulo Fernando. The legal framework for
cross-border insolvency in Brazil. Houston Journal of International Law, v. 32, n. 1, p. 101, 2010. Tradução livre).
2. “A Lei de Recuperação de Empresas apresenta dois vácuos, dois buracos negros onde nada existe, nos quais os
agentes econômicos procuram – porque precisam – atuar do melhor modo. São pontos em que os advogados,
chamados a mostrar a solução, devem ser criativos, e os juízes, aos quais se pede a proteção legal, buscam ser justos.
Ref‌iro-me aos grupos de empresas e à insolvência transnacional” (TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de.
Insolvência transnacional: a novidade aguardada, 2021, p. 441).
3. United Nations Commission on International Trade Law.
4. Período em que o presente artigo foi elaborado.
5. SOUZA JR., Francisco Satiro de; BECUE, Sabrina Maria Fadel. Insolvência transnacional: regime legal e a jurispru-
dência em formação, 2021, p. 338.

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