Corpos dissidentes de um mundo dividido em azul e rosa: um olhar sobre o sexo biológico e a performatividade de gênero na construção da vulnerabilidadede pessoas trans, não bináries e intersexo nas relações privadas
Autor | Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto e Carlos Henrique Félix Dantas |
Páginas | 125-142 |
CORPOS DISSIDENTES
DE UM MUNDO DIVIDIDO EM AZUL E ROSA:
UM OLHAR SOBRE O SEXO BIOLÓGICO
E A PERFORMATIVIDADE DE GÊNERO NA
CONSTRUÇÃO DA VULNERABILIDADE
DE PESSOAS TRANS, NÃO BINÁRIES
E INTERSEXO NAS RELAÇÕES PRIVADAS
Manuel Camelo Ferreira da Silva Netto
Carlos Henrique Félix Dantas
Sumário: 1. Introdução – 2. Sexo, gênero e performatividade: corpos que se moldam? – 3. Entre o rosa
e o azul, há múltiplas vivências: a vulnerabilidade sociojurídica de pessoas trans, não bináries e inter-
sexo – problemas atuais e futuros de um direito privado contemporâneo; 3.1 Pessoas trans: corpos que
subvertem o gênero; 3.2 Pessoas não bináries: corpos que transcendem o gênero; 3.3 Pessoas Intersexo:
corpos que questionam o determinismo biológico do sexo – 4. Considerações nais.
“Entre a oração e a ereção
Ora são, ora não são
Unção, benção, sem nação
Mesmo que não nasçam
Mas vivem e vivem e vem”
(Linn da Quebrada. Oração, 2019).1
1. INTRODUÇÃO
“Atenção! Atenção! É uma nova era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa”,
esse foi o pronunciamento, gravado e divulgado em formato de vídeo, feito, no começo
do ano de 2019, pela então Ministra Damares Alves ao assumir o comando do Ministério
da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.2 Note-se que, embora pareça apenas a
raticação de um estereótipo aparentemente inofensivo, guarda consigo, na realidade,
1. Para ouvir a música, basta acessar o link: https://www.youtube.com/watch?v=y5rY2N1XuLI.
2. G1. Em vídeo, Damares diz que ‘nova era’ começou: ‘meninos vestem azul e meninas vestem rosa’, 03 jan. 2019.
Disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2012/06/numero-de-evangelicos-aumenta-61-em-10-a-
nos-aponta-ibge.html. Acesso em: 10 jun. 2021.
MANUEL CAMELO FERREIRA DA SILVA NETTO E CARLOS HENRIQUE FÉLIX DANTAS
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a representação de toda uma sistemática de imposição de padrões de comportamento
que constroem o modo-de-ser e agir das pessoas no meio social por elas integrado.
Fala-se aqui no chamado sistema sexo-gênero-desejo, compreendido como essa
concepção que reparte toda a sociedade em duas únicas possibilidades, determinadas
pelos genitais (pênis/vagina) e pelos caracteres siológicos de nascença, cuja observância
é fundamental para a determinação do sexo (homem/mulher) e do gênero (masculino/
feminino) dos indivíduos no desenvolvimento do papel afetivo-sexual, pautado num
heterossexismo biologista. Logo, é graças a tal visão cindida que se teve/tem a edicação
de diversos institutos jurídicos a exemplo do casamento heterossexual, da união estável
entre o homem e a mulher, da paternidade, da maternidade, do tempo de contribuição
previdenciário, das licenças paternidade e maternidade, do registro de nascimento, da
obrigatoriedade do alistamento militar etc.
Diante disso, o trecho da canção que epigrafa este capítulo, de autoria da multiartista
Linn da Quebrada, não fora escolhido por acaso, pois reete a despersonalização sofrida
por pessoas trans, mas, de forma mais ampla, o apagamento também perpassado pelos
sujeitos que fogem a esse binarismo (pessoas não bináries e intersexo), no qual ainda
hoje se baseia o ordenamento jurídico brasileiro.3 Tal forma de opressão, entendida
como mecanismo de poder4 sobre esses corpos, para alguns, signicaria a retirada da
condição de sujeito humano pela violação cotidiana e reiterada de seus direitos fun-
damentais e da personalidade; criando-se, assim, uma circunstância vulnerabilizante
perante o meio social e jurídico.
Nesse contexto, parte-se da seguinte problemática: quais mecanismos de poder do
sistema sexo-gênero-desejo, no Direito Privado, favorecem a deslegitimação do reconhe-
cimento de corpos dissidentes (pessoas trans, não bináries e intersexo), na esfera pública,
de modo a construir uma vulnerabilidade sociojurídica desses indivíduos?
À vista disso, propõe-se a investigar como o sistema sexo-gênero-desejo, no direito
privado, oportuniza a construção sociojurídica de vulnerabilidade para àquelas pessoas
que não se enquadram na sua compreensão estritamente binária (trans, não bináries
e intersexo). Para tanto, foram levantados os seguintes objetivos especícos: a) com-
preender de que forma o sistema sexo-gênero-desejo propõe um modelo de controle
dos corpos, enquadrados em uma ótica estritamente binária, ao considerar, sobretudo,
os signos gênero, sexo e identidade de gênero na perspectiva butleriana; b) entender a
3. Nessa passagem, pode-se dizer que a cantora revela tratar-se de uma realidade enquadrada como “sem nação”,
aproximando-as, em essência, da gura juslosóca de “vida nua” – bem trabalhada por Giorgio Agamben, em
seu livro “Homo Sacer” (1995) –, caracterizando-se como àquela vida desqualicada de status político, podendo
ser morta sem que essa conduta caracterize homicídio, pois há a separação do corpus para retornar a pessoa
humana ao sentido natural, afastando-a do sentido de sujeito de direito (Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer:
o poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002).
4. A menção aqui feita à ideia de “poder” está relacionada à perspectiva foucaultiana da expressão, não signicando
propriamente um lugar de maior hierarquia ocupado por uma pessoa ou grupo numa determinada sociedade,
mas sim um conjunto de relações que são exercidas, no meio social, a partir de um discurso sobre a verdade,
gerando um saber que molda, constrói e categoriza os corpos que a integram (Cf. FOUCAULT, Michel. Em
defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 28-40, passim).
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