O corte

AutorLucas Galvão de Britto
Ocupação do AutorMestre e Doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP
Páginas1-60
1
Capítulo Primeiro
O CORTE
1. Da necessidade do corte
Existem muitas formas de começar a escrever um texto,
no entanto, há apenas uma forma de começar a conhecer qual-
quer objeto que se pretenda: por meio do corte. “Viver é recor-
tar o mundo8 escreveu PONTES DE MIRANDA em seu O
Problema Fundamental do Conhecimento, mas porquê? Tudo
aquilo que nos chega aos sentidos é limitado: não importa a
imensa gama de sons que “exista” no mundo natural, aos nos-
sos ouvidos chegam apenas sete oitavas; igualmente, sem o
apelo a maquinário avançado, nossos olhos não percebem a
luz emitida a certas frequências, nem nos permitem olhar em
todas as direções, ver mais distante do que alguns quilômetros
ou coisas menores do que alguns milímetros.
Considerações semelhantes poderiam ser feitas sobre
todos os sentidos e, especialmente, sobre aquilo que concatena
todos eles e nos permite atribuir significado ao mundo: também
nossas mentes são limitadas, precisando, a todo o tempo, colocar
8. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. O Problema Fundamental
do Conhecimento. Porto Alegre: Globo, 1937, p. 27.
2
LUCAS GALVÃO DE BRITTO
entre parênteses metódicos a multidão de dados que nos apa-
rece para isolar os objetos da experiência, proporcionando,
desse modo, as condições para que possamos nos aproximar
dos aspectos do objeto que pretendemos conhecer. Viver – e
conhecer – é um ininterrupto esforço de recortar e adjudicar
sentido ao mundo.
Se, por um lado, o corte aparece como limite que a con-
dição humana nos impõe, restringindo nossa habilidade para
“absorver” a complexidade do mundo, por outro, o ato de
promover cisões no contínuo heterogêneo da realidade sensível
permite ao sujeito deter-se sobre um objeto, voltar a ele sua
atenção para, com isso, conhecê-lo. Assim, faz com que o ob-
jeto cindido e conhecido passe a integrar seu repertório pessoal
de experiências, relacionando-se com outros objetos, resultados
prévios de outras operações de cortes. Eis aí um ponto impor-
tante de que parte essa pesquisa: o objeto do conhecimento é
sempre criado por meio de um procedimento de corte ao qual
poderíamos acrescer o adjetivo de gnosiológico.
O ato de promover cortes gnosiológicos é operação tão
básica que muitas vezes o fazemos sem nos dar conta disso. É
algo tão integrado à forma com que nós travamos contato com
o mundo, que a tomada de consciência sobre esse procedimen-
to incessantemente repetido passa ao largo da atenção de
muitos, mas, ainda que não nos apercebamos, continuamos a
cindir o mundo. Tomar consciência desse processo é apenas
uma opção, desempenhá-lo, recortando o mundo em nossa
experiência para conhecê-lo, não o é.
A circunstância de tratar-se de trabalho científico faz com
que os cortes aqui esboçados, mais que gnosiológicos, sejam
epistemológicos.9 Isto é, fundados na experiência – aqui o direito
9. Segundo o Dicionário Houaiss, a palavra tem raiz etimológica no étimo
grego episteme (conhecimento científico) acrescida do sufixo logos (de estu-
do, pensamento, reflexão). Trata-se do estudo do conhecimento científico.
3
O LUGAR E O TRIBUTO
positivo – e realizados mediante o cumprimento de um mé-
todo – neste estudo o empírico-dedutivo.10
No curso desta pesquisa, procurarei perfazer o trajeto do
pensamento desde a enunciação minuciosa dos cortes iniciais
ao desencadear das conclusões – que também poderíamos
chamar de cortes finais – buscando explicitar, sempre que
oportuno for, os aspectos gnosiológicos envolvidos.
Tomar consciência do papel desempenhado pelos atribu-
tos de espaço é, portanto, um importante passo para que se
possa compreender sua relevância na construção da realidade
jurídica: também ela precisa de referências espaciais e tempo-
rais para ordenar aquilo que o conhecimento jurídico corta da
experiência sensível e organiza de forma a possibilitar a refe-
rência a isso como algo real. A elaboração de parâmetros de
espaço, mais que atender aos fins mais facilmente perceptíveis,
como aquele de proporcionar uma escala, é pressuposto para
que se possa tratar de temas como existência, realidade.
Trabalhar assuntos como este requer atenção para aqui-
lo que se esconde por detrás do “óbvio”. Se, por um lado, não
mudará a maneira como se pensa o espaço, por outro, permite
trazer a tona certos pontos centrais na relação do homem e seu
entorno que, certamente, contribuirão para que melhor se
trate da pertinência da linguagem jurídica no trato de relações
espaciais, ou, como no objeto desse trabalho, dos tributos e os
seus lugares.
2. Sobre o ato de definir
Para que se possa falar sobre o objeto cortado pelo esforço
(HOUAISS, Antonio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Ja-
neiro: Objetiva, 2009, p. 783).
10. Por isso mesmo, a única função que se pode reservar à jurisprudência no
presente contexto é o de exemplo, sendo descabido seu uso na construção
de raciocínios indutivos.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT