O Crime de Lesões Corporais Leves na Lei Maria da Penha

AutorAlberto Wunderlich - Leonel Desimon
CargoAdvogado. Mestre pela Università Degli Studi Roma Tre (Roma/IT) - Acadêmico do Curso de Direito da Universidade Luterana do Brasil
Páginas18-26

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Analisar a natureza jurídica da ação penal a ser utilizada nos casos que envolvam lesões corporais leves, quando praticadas no âmbito familiar, considerando a aplicação da Lei 11.340/06, popularmente conhecida como "Maria da Penha", é o escopo do presente artigo.

Iniciamos com breve análise acerca da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9.099/95). Depois, trataremos do crime de lesões corporais leves, dando enfoque à polêmica ocasionada por esse delito na Lei Maria da Penha, quando abordaremos a discussão travada entre os artigos 16, da referida lei, que prevê a retratação da vítima e, conse-quentemente, entende que se aplica a ação penal pública condicionada aos casos de lesões corporais leves, e o artigo 41, que afasta a Lei dos Juizados Especiais, entendendo que deva ser aplicada a ação penal pública incondicionada.

2. Breve análise da Lei dos Juizados Especiais (Lei 9 099/95)

Atendendo disposição constitucional (artigo 98, inciso I, da Constituição Federal) e com o intuito de desafogar a justiça criminal de crimes de menor gravidade, foram criados através da Lei 9.099, em 26 de setembro de 1995, os juizados especiais criminais, orientados pelos princípios da oralidade, simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade.

Explica Julio Fabbrini Mira-bete:

"Passou-se, assim, a exigir um processo penal de melhor qualidade, com instrumentos mais adequados à tutela de todos os direitos, assegurando-se a utilidade das decisões judiciais, bem como a implantação de um processo criminal com mecanismos rápidos, simples e econômicos, de modo a suplantar a morosidade no julgamento de ilícitos menores, desafogando a Justiça Criminal, para aperfeiçoar a aplicação da lei penal aos autores dos mais graves atentados aos valores sociais vigentes" (Mirabete, 2002, p. 24).

O doutrinador Fernando da Costa Tourinho Filho justifica a criação dos juizados especiais: "Os procedimentos morosos, com seus extensos arcos procedimentais, já não se justificam para a solução de infrações penais de frágil potencialidade ofensiva" (Tourinho Filho, 2008, p. 14).

Por sua vez, Ada Pellegrini Grinover descreve como deve ser o procedimento utilizado pelos juizados especiais:

"Deve ser impregnado da simplicidade e da informalidade, que é a marca principal do juizado. É assim que a audiência preliminar deverá acontecer: com os interessados, o Ministério Público e o Juiz, reunidos, expondo as suas posições, a fim de que, se for o caso, evite-se a instauração do processo e possa a vítima ser reparada" (Grinover, 2005, p. 84).

Outrossim, há de ser salientada a importância da aplicação da Lei dos Juizados Especiais para o falido sistema penal brasileiro, na medida em que a referida lei propõe a aplicação de penas alternativas ou substitutivas (transação penal, restritiva de

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direito, multa). Nesse sentido ensina Carmem Hein de Campos:

"(...) a aplicação de penas consideradas alternativas ou substitutivas, para uma série de delitos, significa uma vitória do movimento criminológico moderno que, há muito, vem demonstrando a falência da pena de prisão em todo o mundo, e em especial nos países latino-americanos. Em uma perspectiva positiva, espera-se que o discurso minimalista possa ganhar cada vez mais adeptos e mudar o quadro de dor e de violações aos direitos humanos provocados pelo sistema penal brasileiro" (Campos, 2003, p.web).

No entanto, para melhor compreensão da Lei dos Juizados Especiais, se faz necessário compreendermos o que vem a ser um crime de menor potencial ofensivo, o qual analisaremos a seguir.

2.1. O delito de menor potencial ofensivo

Conforme previa inicialmente o artigo 61 da Lei dos Juizados Especiais, depreende-se que o legislador, inicialmente, delimitou o conceito de menor potencial ofensivo baseando-se no critério da pena cominada, como podemos analisar pela antiga transcrição do referido artigo: "(...) as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 1 (um) ano, excetuados os casos em que a lei preveja procedimento especial."

Com o surgimento da Lei 10.259/01, que criou os juizados especiais cíveis e criminais no âmbito da Justiça Federal, o conceito de crime de menor potencial ofensivo passou a sofrer alterações, conforme previa o parágrafo único do artigo 2o da referida lei: "Consideram-se infrações de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a dois anos, ou multa."

Mais tarde, surgiu a Lei 11.313/06, que deu nova redação ao artigo 61 da Lei 9.099/95, o qual restou redigido da seguinte forma: "Consideram-se infrações penais de menor potencial ofensivo, para os efeitos desta Lei, as contravenções penais e os crimes a que a lei comine pena máxima não superior a 2 (dois) anos, cumulada ou não com multa."

Comentando a referida alteração, leciona Fernando da Costa Tourinho Filho:

"(...) com a promulgação da Lei 11.313/2006, que deu nova redação ao art. 61 da Lei sob comentário, passando a considerar infrações de menor potencial ofensivo não só as contravenções como também os crimes cuja pena máxima não ultrapasse dois anos" (Tourinho Filho, 2008. p. 74).

Desta forma, podemos concluir que o delito de menor potencial ofensivo são todas as contravenções penais e os crimes em que sua pena máxima não seja superior a dois anos, cumulada ou não com multa.

2.2. Comentários acerca do artigo 88 da Lei dos Juizados Especiais

Conforme transcrição do artigo 88 da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais, se infere que, nos casos de lesões corporais leves, a lei passou a exigir a representação da vítima para o prosseguimento da ação penal, ou seja, a ação passou a ser pública condicionada à representação. Eis a transcrição do referido artigo: "Além das hipóteses do Código Penal e da legislação especial, dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas."

Sobre o tema leciona Cézar Roberto Bitencourt:

"Os crimes de lesões corporais leves e de lesões corporais culposas continuam sendo de ação penal pública, mas, para movimentar o aparelho repressivo estatal, dependerão da satisfação de uma condição por parte do ofendido, qual seja, a representação. Em outros termos, a ação penal, nesses crimes, passa a ser pública condicionada" (art. 88) (Bitencourt, 1997, p. 97).

Continuando, o doutrinador referido entende que foi benéfica para o Judiciário a alteração trazida pela Lei 9.099/95 no que se refere à natureza jurídica da ação penal a ser utilizada nos casos de lesões corporais leves, uma vez que, em grande número, as partes envolvidas se reconciliam.

"Na maioria das vezes, o dano produzido pelo delito de lesões corporais leves beira os limites da insignificância, não justificando todo dispêndio na movimentação da pesada máquina burocrática do Poder Judiciário. Mas constrangidas pelo princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, milhares de ações penais abarrotam os escaninhos dos foros brasileiros, praticamente sem sentido, onde, muitas vezes, as partes envolvidas já realizaram sua composição pessoal" (Bitencourt, 1997, p. 98 a 99).

Assim, com a possibilidade da vítima ter a opção de não representar criminalmente contra o autor do fato, entendemos que a Lei dos Juizados Especiais trouxe um grande avanço para o país, pois não só as partes foram beneficiadas, uma vez que passaram a não precisar acompanhar uma instrução criminal em que, muitas vezes, o fato já está resolvido entre autor do fato e vítima, como também o Judiciário se viu agradecido por ver seus cartórios criminais desafogados de ações de pequeno porte.

3. O crime de lesões corporais leves

O delito de lesões corporais leves ocorre quando existe ofensa à integridade corporal ou a saúde de ou-trem, como estabelece o artigo 129, caput, do Código Penal brasileiro: "Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem."

Considerando que não existe qualquer ressalva no Código Penal em relação ao referido delito, tal

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crime se processava mediante ação pública incondicionada até a criação da Lei 9.099/95, Lei dos Juizados Especiais. Ocorre que a Lei 9.099/95 alterou a natureza da ação penal prevista nesse crime: para ação penal pública condicionada à representação da vítima. Em outras palavras, a referida lei passou a descrever o delito de lesões corporais leves como crime de menor potencial ofensivo. Nesse sentido aponta Maria Berenice Dias:

"A Lei dos Juizados Especiais, ao introduzir mecanismos despenalizado-res, elegeu como de pequeno potencial ofensivo, entre outros, os crimes de lesão corporal leve e de lesão culposa, transformando-os em delitos de ação pública condicionada. Ou seja, o desencadeamento da ação penal passou a depender da representação do ofendido" (Dias, 2007, p. 116).

Após a vigência da Lei 9.099/95, o nosso sistema processual penal teve sua posição bem definida acerca da aplicação da ação penal aos fatos descritos no artigo 129, caput, do Código Penal, inclusive quando ocorridos no seio familiar, aplicando-se a ação pública condicionada à representação da vítima. No entanto, com a criação da Lei Maria da Penha, surgida em 2006, se iniciou-se um debate acalorado sobre a natureza jurídica da ação penal a ser utilizada nos casos envolvendo lesões corporais leves praticadas no âmbito familiar. Isso se deu devido à controvérsia existente entre os artigos 16 e 41 da Lei Maria da Penha, como...

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