Criminal: A incongruência da pena privativa no Brasil

AutorHuston Daranny Oliveira
CargoEspecialista em ciências criminais pela estácio de sá
Páginas72-97
72 REVISTA BONIJURIS I ANO 33 I EDIÇÃO 669 I ABR/MAIO 2021
DOUTRINA JURÍDICA
Huston Daranny OliveiraESPECALSTA EM CÊNCAS CRMNAS PELA ESTÁCO DE SÁ
A INCONGRUÊNCIA DA PENA
PRIVATIVA NO BRASIL
I
SEM QUE O PODER PÚBLICO OFEREÇA PRISÕES COMPATÍVEIS COM
AS NORMAS CONSTITUCIONAIS É IMPOSSÍVEL VERIFICAR QUAIS
SÃO OS EFEITOS DAS PENAS DE RECLUSÃO
1. DAS PENAS PRIVATIVAS DE LIBERDADE
As penas surgem como resposta – dos integran-
tes da comunidade e do Estado – às infrações
cometidas pelas pessoas que se desviam de um
padrão jurídico-normativo estabelecido. Afinal,
para a cons tituição de sociedades organizadas
há uma necessidade natural e ontológica de
se instituir regras de convivência, cuja obser-
vância cogente deve ser legitimada pela possi-
bilidade de aplicação de sanções aos autores de
comportamentos desviantes.
É evidente que a história dos povos revela va-
riados modelos de sanção ao longo dos tempos e,
entre as modalidades de penas já inventadas pelo
homem para a aplicação no direito sancionador, as
prisões constituem marco notável. Como leciona
André Estefam (2018, p. 388), o direito penal, por
muitos séculos, utilizou como principais sanções
as penas capitais, corporais, infamantes e cruéis,
as quais passaram a ser criticadas por causa da
grande iniquidade que o Estado tratava seus ci-
dadãos criminosos. O autor lembra que as críticas
do século 18 feitas por expoentes como o Marquês
de Beccaria e Jonh Howard teriam chegado com
fervor à América do Norte, levando à criação dos
primeiros sistemas penitenciários do mundo.
Este artigo realiza análise acerca do surgi-
mento e do desenvolvimento das penas,
com foco nas sanções privativas de li-
berdade e disposições normativas a elas
aplicadas, bem como a situação em que
se encontra o sistema penitenciário brasileiro.
Aliás, sobre as penas privativas de liberdade,
houve o exame dos principais sistemas peniten-
ciários adotados pelo mundo, suas característi-
cas e distinções marcantes.
Sob a constatação de que o sistema penitenci-
ário brasileiro deve ser caracterizado como um
“estado de coisas inconstitucional”, a pesquisa
passa a examinar objeções comumente proferi-
das em relação à pena privativa de liberdade e
ao modelo de pena ide alizado. Ademais, indaga
em qual medida a situação fática do sistema pe-
nitenciário brasileiro interfere na eficiência das
penas cumpridas em prisões.
As respostas a estes questionamentos depen-
dem da exata compre ensão acerca do que vem a
ser o direito penal e a pena privativa de liberda-
de. Só então será possível dizer se o Estado ainda
precisa dessa espécie de penalidade no contexto
social brasileiro e quais são as alternativas para
a solução da crise penitenciária nacional.
Huston Daranny OliveiraDOUTRINA JURÍDICA
73
REVISTA BONIJURIS I ANO 33 I EDIÇÃO 669 I ABR/MAIO 2021
1.1. Sistemas penitenciários
Julio Fabbrini Mirabete e Renato N. Fabbrini
(2014, p. 235) citam Manoel Pedro Pimentel:
A prisão, grande símbolo das penas privativas de li-
berdade, tem origem nos mosteiros da Idade Média,
onde os monges recebiam o confinamento em celas
como punição pelas suas faltas. No local, os clérigos
deveriam dedicar-se, em silêncio, à meditação e à
busca pelo arrependimento, a fim de alcançarem o
perdão de Deus. Assim surge o termo “penitenciária”,
oriundo das “penitências” cumpridas pelos monges
durante o período em que ficavam reclusos. É o pri-
meiro modelo de pena privativa de liberdade organi-
zado e com métodos sistematizados. A partir de então
co meçam a surgir outras referências, com aplicação
mais genérica e abrangente, visando ao alcance da-
queles que cometessem deli tos no seio da sociedade.
Também citando Manoel Pedro Pimentel,
André Estefam (2018, p. 388) obtempera que a
ideia das penitenciárias da Idade Média inspi-
rou a criação das primeiras prisões durante o
século 16, em Londres, na Inglaterra. Trata-se
da House of Correction, constru ída entre 1550
e 1552, e que acarretou a edificação de diversos
outros presídios ingleses. Esse autor esclarece
ainda que foi no século 18 que o encarceramento
foi difundido como modelo de penaliza ção, com
destaques para a Casa de Correção de Grand, na
Bélgica (1775), e para o Hospício de São Miguel,
em Roma (1703 e 1704).
Dessa forma, os quatro modelos penitenciá-
rios mais conhecidos e abordados pela doutrina
são o pensilvânico, o panóptico, o auburniano e
o progressivo.
O sistema pensilvânico, também chamado de
belga ou celular, teve origem na cidade norte-
-americana da Filadélfia, maior loca lidade do
estado da Pensilvânia. De acordo com Rogério
Greco (2013, p. 480), esse modelo consiste no
isolamento celular ab soluto. O condenado não
pode trabalhar nem receber visitas, constante-
mente levado à leitura da Bíblia para que possa
alcançar arrependimento.
Pelos ensinamentos de André Estefam (2018,
p. 389), essa caracte rística de isolamento absolu-
to do modelo pensilvânico surgiu para dar fim
à promiscuidade até então frequente nos presí-
dios. Conhe cido como solitary system ou solita-
ry confinement, o sistema evo luiu, depois, para
o separate system, que admitia conversas dos
presos com capelães e funcionários da prisão,
além de recebimento de visitas.
Michel Foucault (1997, p. 112) lamenta que o
isolamento abso luto do modelo pensilvânico
não buscava “a requalificação do criminoso ao
exercício de uma lei comum, mas à relação do
in divíduo com sua própria consciência e com
aquilo que pode ilu miná-lo de dentro”.
Digno de severas críticas, o sistema almeja-
va o arrependimento do criminoso ao investir
mais em seus aspectos individuais e morais do
que em seu reajuste social. Pretendia ensinar
valores éticos perdidos ou deturpados ao longo
da vida do delinquente. Porém, tais métodos ge-
ravam fortes ofensas à dignidade do condenado.
Não é com a leitura obrigatória da Bíblia que
os valores da religião serão impregnados na
mente. É possível que essa estratégia até piore
a situação de raiva, rancor ou outro sentimento.
Quando alguém comete um crime, um dos prin-
cipais objetivos da aplica ção da pena privativa
de liberdade deve ser a reintegração social. Prá-
ticas como o isolamento e o silêncio absolutos,
bem como a proibição do trabalho, certamente
dificultam esse intuito.
André Estefam (2018, p. 389) acrescenta – en-
tre o sistema celular e o auburniano – o siste-
ma panóptico, criado por Jeremy Ben tham na
Inglaterra do século 19, especialmente pela
necessida de de resolver o problema do crescen-
te encarceramento advindo da independência
dos Estados Unidos e do processo de depor-
tação da Austrália.
Jeremy Bentham (2008, p. 20-21) descreve um
modelo de “casa de inspeção penitenciária” for-
mado, basicamente, por um edi cio circular em
que as celas ocupavam a circunferência e fica-
vam separadas entre si para impedir a comuni-
Quando alguém comete um crime, um dos principais objetivos da
aplicação da pena privativa de liberdade deve ser a reintegração social.
Práticas como a proibição do trabalho dicultam esse intuito

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT