Criminalidade, desigualdade social e penalização de adolescentes e jovens

AutorVicente de Paula Faleiros
CargoAssistente social, bacharel em direito, especialista em planejamento e em gerontologia
Páginas175-194
Direito, Estado e Sociedade n. 61 jul/dez 2022
Criminalidade, desigualdade social e
penalização de adolescentes e jovens
Criminality, social inequality and penalization of adolescents
and young people
Vicente de Paula Faleiros*
Universidade de Brasília, Brasília DF, Brasil
1. Introdução
O objetivo deste artigo é o de relacionar as condições de desigualdade social com o
processo de prática do crime e da criminalidade e com a fabricação da penalização de
adolescentes e jovens que são sancionados no sistema socioeducativo. Para Durkheim
1
,
numa perspectiva de funcionalidade da ordem social, o crime é normal porque é impossível
que exista uma sociedade sem cr ime, aquilo que é socialmente reprovável. Crimes seriam
atos que ferem os valores es tabelecidos impostos pela ordem dominante, configurando
desordem ou anomia. Acontecem com regularidade conforme o “consenso” de normalidade
que é socialmente adotado. Essa visão funcionalista de uma sociedade normal ordeira versus
uma sociedade patológica que possa ser curada ainda permanece como desvios pessoais nas
representações das infrações que os adolescentes cometem. Em contraponto ao
funcionalismo, na perspectiva crítica, a criminalidade é analisada no contexto da
desigualdade estruturada socioeconomicamente em articulação com a superestrutura
política e não apenas como falta de aces so aos bens de consumo. A desigualdade de
disponibilidade de condições conduz à desigualdade de meios de acesso a bens materiais e
a for mas de inserção diversificada no mundo do trabalho informal e de sua organização
ilegalmente constituída e, por isso, multidimensionalmente criminalizada. Na visão
funcionalista, desconsidera-se a questão da desigualdade estrutural, levando-se em conta a
representação da classificação naturalizada entre “boas” e “más” famílias ou pessoas
conforme os valores de comportamentos socialmente aceitos ou não.
O foco deste trabalho é a discussão da ancoragem da penalização social das condutas
criminalizadas numa construção da ordem social e da obediência a ela, reforçada pelo
sistema penal. Este preconiza e força a conduta considerada normal pela ordem dominante,
mesmo nas democracias estabelecidas pelo bloco dos interesses de classes prevalecentes. A
* Assistente social, bacharel em direito, especialista em planejamento e em gerontologia, PhD em sociol ogia pela
Univseristé de Montréal, professor titular aposentado e professor emérito da Universidade de Brasília, com pós-
doutrado na Escola de Altos Estudos em Ciênci as Sociais- Paris. Pesquisador do CNPq e da FAP-DF. Autor e
consultor. E-mail: vicentefaleiros@terra.com.br.
1
DURKHEIM, 1969, p. 62.
Vicente de Paula Faleiros
Direito, Estado e Sociedade n. 61 jul/dez 2022
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lei não é neutra, reafirmando a expressão de Espezim dos Santos e Veronese
2
de que o
Direito não é técnica neutra na teoria crítica dos direitos humanos. Neste estudo, vamos
considerar a criminalidade e a criminalização dos adolescentes e jovens na relação com a
ordem dominante e a estruturação da desigualdade socioeconômica.
O Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA
3
define como adolescência a faixa etária
de 12 a 18 anos, e o Estatuto da Juventude
4
considera jovem quem esteja na faixa etária de
15 a 29 anos. O Sistema Socioeducativo Sinase
5
contempla os adolescentes de 12 a 18
anos, considerando-os inimputáveis pelo Código P enal e enquadrados na justiça
socioeducativa. Nem sempre os dados das pesquisas e das instituições trazem a
compatibilização dessas idades.
Este é um estudo reflexivo de análise de profundidade de revisão narrativa, baseado
em dados secundários originários de fontes governamentais e não governamentais e de
pesquisas e textos de caráter analítico e/ ou empírico. Num pr imeiro momento, coloca-se a
questão sobre criminalidade juvenil e estrutura social e penal e, em seguida, a expressão
dessa criminalidade em dupla dimensão contra os jovens e pelos jovens. Por último, mostra-
se a construção da penalização no Sinase. As considerações finais trazem à tona a discussão
da desigualdade de quem está sendo punido e de quem está sendo premiado na sociedade
capitalista. Conclui-se que a estrutura da penalização de adolescentes articula-se à estrutura
e superestrutura da exploração e da dominação capitalistas, uma reafirmando a outra. O
sistema penal socioeducativo faz parte tanto do aparelho ideológico quanto do aparelho
repressivo do Estado, como já assinalara Althusser
6
, que reposiciona, de forma estruturalista,
a visão histórica gramsciana de articulação entre estrutura e superestrutura em movimento
dialético da história e do contexto das relações de forças.
2. Ato infracional de adolescentes: uma análise crítica
Desde meados do Século XX, vem-se estudando a delinquência juvenil, com o escopo
do controle social de quem é classificado como desviante da ordem. No final dos anos 40,
Merton
7
discutiu a anomia como uma discrepância entre os objetivos culturais a serem
alcançados e os meios disponíveis, inclusive a delinquência, com afastamento das normas
institucionais e do controle da sociedade, dependendo do tipo de personalidade.
As intepretações do “tornar-se desviante” foram se construindo sociologicamente
em torno da relação com as normas estabelecidas. Dubar
8
compilou quatro “ teorias
sociológicas” da delinquência. Uma, funcionalista, que retoma a falta de controle social
formulada por Durkheim
9
; outra, culturalista, conforme a “análise da gangue” feita na
Universidade de Chicago. A gangue cria um modo de viver e de agir r eativo à situação
dominante, contrapondo-se a ela pelo modo de se vestir, de andar, de frequentar locais de
música estigmatizados e pelo uso de substâncias ilícitas.
2
ESPEZIM DOS SANTOS; VERONESE, 2019.
3
LEI 8.069, de 13 de julho de 1990.
4
LEI 12.852/2013.
5
LEI 12.318, de 26 de agosto de 2010.
6
ALTHUSSER, 1980.
7
MERTON, 1970, p. 256.
8
DUBAR, 2007, pp. 107-180.
9
DURKHEIM, 1969.

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