Crise democrática e cultura constitucional: o absurdo da tese de que não há crise «porque as instituições estão funcionando

AutorDaniel Sarmento
Páginas77-100
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COLEÇÃO DIREITO CONSTITUCIONAL
Daniel Sarmento1
CAPÍTULO 2
CRISE DEMOCRÁTICA E CULTURA
CONSTITUCIONAL: O ABSURDO DA TESE
DE QUE NÃO HÁ CRISE «PORQUE AS
INSTITUIÇÕES ESTÃO FUNCIONANDO»
RESUMO
O trabalho analisa a crise democrática vivenciada pelo Brasil con-
temporâneo. Após demonstrar o equívoco da narrativa de que não
há crise porque «as instituições estão funcionando», argumenta
que tampouco bastam as instituições para assegurar a democracia
constitucional. O enraizamento da cultura constitucional na so-
ciedade é também indispensável para garantir a força normativa
e a resiliência da Constituição. Porém, a cultura constitucional
brasileira tem revelado sua debilidade, com a eleição de Jair Bol-
sonaro – um populista autoritário de extrema direita – e com o
apoio de ampla parcela da sociedade às suas ações radicalmente
contrárias à Constituição e à democracia.
1 Professor Titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio
de Janeiro - UERJ. Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, mestre e doutor em Direito Público pela mesma instituição, foi visiting
scholar na Universidade de Yale – EUA. Coordenador da Clínica de Direitos
Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ. Integrou o Ministério Público
Federal. Advogado.
DEMOCRACIA E RESILIÊNCIA NO BRASIL A DISPUTA EM TORNO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
COLEÇÃO DIREITO CONSTITUCIONAL
PATRÍCIA PERRONE CAMPOS MELLO | THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE ORGANIZADORES
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INTRODUÇÃO
A esta altura, com tudo o que temos visto e vivido no Brasil nos últimos
tempos, até mesmo Pollyanna – a conhecida personagem da literatura infanto-
-juvenil que só enxergava o lado positivo de todas as coisas – teria diculdades
em negar as inclinações profundamente autoritárias do governo Bolsonaro. Um
governo cujo Presidente louva a todo tempo a ditadura, glorica torturadores,
tem relações históricas com milicianos e, de vez em quando, ameaça dar golpe de
estado. Um governo que, de modo sistemático, ataca a imprensa, trata com ódio
e desprezo os grupos vulneráveis, destrói o meio ambiente, tenta asxiar a so-
ciedade civil, luta a favor das armas e contra a cultura, estimula a violência entre
sua base social, promove agenda global contra os direitos humanos e até sabota
políticas de saúde pública, em plena pandemia do coronavírus.
É salutar que exista em qualquer país uma direita democrática, disputando
eleições, corações e mentes. Em uma democracia, a vontade do eleitor tem de im-
portar. Então, quando forças da direita ganham as eleições, devem ter o direito de
governar, desde que respeitem os limites impostos pela Constituição, que dizem
respeito sobretudo à preservação das regras do jogo democrático e à garantia de
direitos fundamentais, inclusive das minorias políticas e sociais. Os esquerdistas
não cam felizes, mas a democracia é assim: às vezes se ganha, às vezes se perde.
Porém, claramente não é disso que se trata. Parece hoje quase ridículo
enquadrar o governo Bolsonaro como um «governo normal», conservador, mas
democrático. Primeiramente, porque a ideologia professada não é conservadora,
mas reacionária: não pretende conservar, mas destruir as conquistas civilizatórias
da Constituição de 882. Nas palavras de Jason Stanley – um dos maiores espe-
2 Nesse sentido, NOBRE, Marcos. Ponto Final: a guerra de Bolsonaro contra a
democracia. São Paulo: Todavia, 2020.
PALAVRAS-CHAVE
Crise democrática. Cultura constitucional. Fragilidade.

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