Elementos da crise do estado democrático de direito: um panorama conceitual

AutorCláudio Pereira de Souza Neto
Páginas33-75
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COLEÇÃO DIREITO CONSTITUCIONAL
Cláudio Pereira de Souza Neto1
CAPÍTULO 1
ELEMENTOS DA CRISE DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO:
UM PANORAMA CONCEITUAL
RESUMO
O artigo sistematiza os principais elementos conceituais necessá-
rios à compreensão do processo de erosão democrática que tem
lugar no contexto atual.
PALAVRAS-CHAVE
Erosão democrática. Populismo. Constitucionalismo abusivo.
1 Professor da Universidade Federal Fluminense. Doutor em Direito Público pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Mestre em Direito Constitu-
cional e Teor ia do Estado pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
– PUC-Rio. Advogado.
INTRODUÇÃO
Quando Bolsonaro venceu as eleições de 2018, a democracia estava à prova,
como ainda está, não só no Brasil: em todos os continentes, governos vêm sendo
DEMOCRACIA E RESILIÊNCIA NO BRASIL A DISPUTA EM TORNO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
COLEÇÃO DIREITO CONSTITUCIONAL
PATRÍCIA PERRONE CAMPOS MELLO | THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE ORGANIZADORES
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eleitos sustentando valores contrários à democracia liberal1. Na maior parte dos
países que vivenciam a atual guinada autoritária, o novo regime não tem se instau-
rado por meio de golpes militares, como costumava ocorrer no passado, os quais
demarcavam com clareza o limite entre a democracia e a pós-democracia. O que
tem predominado é a «erosão» progressiva do regime democrático, cujas institui-
ções, embora se mantenham vigentes, perdem paulatinamente sua autenticidade e
efetividade2. No início do governo de Bolsonaro, ninguém podia prever se a crise da
democracia brasileira continuaria a seguir esse padrão3 ou se evoluiria para «colap-
so» das instituições vigentes. Há exceções recentes ao padrão da erosão progressiva:
golpes militares ocorreram, por exemplo, no Egito, em 2013, e na Tailândia, em
20144. Não é outra a vocação do mandatário brasileiro, da qual nunca fez segredo5.
1 Aqui e alhures, instituições concebidas para funcionar com autonomia são atacadas
ou capturadas; minorias são discriminadas e perseguidas; adversários são quali-
cados como inimigos; embora as eleições continuem a ocorrer, os candidatos da
oposição são inabilitados; ativistas e jornalistas são submetidos a intimidações con-
tínuas. Elementos da crise do regime democrático podem ser identicados em paí-
ses como a Hungria, a Polônia, as Filipinas, a Índia e, até mesmo, os EUA, durante
o governo de Trump. A repetição de um mesmo padrão em diversos países chega a
levar alguns estudiosos de política comparada a sustentar que a crise da democracia
não é contextual, mas estrutural. Cf., por todos: RUNCIMAN, D. Como a demo-
cracia chega ao m. Trad. Sergio F laksman. São Paulo: Todavia, 2019.
2 Cf.: GINSBURG, T.; HUQ, A. Z . How to save a constitutional democracy.
Chicago; London: e Chicago University Press, 2018. p. 2 ss.
3 Como será demonstrado, no Brasil, a deagração do processo de erosão da de-
mocracia se deu em junho de 2013: envolve o não reconhecimento do resultado
das eleições, em 2014; o impeachment, sem crime de responsabilidade, em 2016;
a aprovação da Emenda Constitucional n. 95, que congela os gastos públicos por
20 anos, também em 2016; a generalização do «populismo penal», que culmina
com a interferência da Lava Jato no impeachment de 2016 e nas eleições de 2018.
Hoje, o movimento prossegue, sob a direção de Bolsonaro.
4 Desde 2010, mais de 30 golpes militares foram tentados em todo o mundo. Em
muitos desses casos, a erosão da democracia conduziu a crises institucionais que
levaram à ruptura. Não há separação necessária entre erosão e colapso: em deter-
minados contextos nacionais, há imbricação.
5 Em entrevista incendiária concedida em 1999, dizia que, se chegasse à Presidên-
cia, «daria golpe no mesmo dia». A armação foi feita em 1999, no programa Câ-
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Nos primeiros meses de 2020, Bolsonaro compareceu a manifestações de rua que
apelavam pela decretação de um «novo AI n. 5»6 e pelo «fechamento do Congresso
Nacional». Porém, se prevalecer aqui a tendência internacional, a democracia não
será suprimida instantaneamente, mas corroída aos poucos, por meio da inoculação
progressiva de novos elementos autoritários7. O objetivo do presente texto é apre-
sentar um panorama conceitual que permita compreender essa crise por que passa
a democracia, com o que se pretende prover elementos para a análise do momento
brasileiro atual.
1. NEOLIBERALISMO, GLOBALIZAÇÃO E
ASCENSÃO DA NOVA DIREITA
Com a queda do bloco soviético, Fr ancis Fukuyama anunciava o «m da
história». Teríamos chegado à síntese conclusiva do processo histórico, funda-
da no consenso em torno da democracia constitucional e da economia de mer-
mara Aberta, da TV Bandeirantes. Já na presidência, perguntado se promoveria a
ruptura da democracia, não o conrmou, nem negou: «quem quer dar um golpe
jamais vai falar que vai dar».
6 Os atos institucionais eram medidas de força, editadas pelo governo militar, que
se sobrepunham à Constituição em vigor. O Ato Institucional n. 5, decretado
pelo presidente Costa e Silva, em 1968, concedia ao Executivo Federal o poder de
determinar o recesso do Congresso Nacional e das casas parlamentares estaduais
e municipais; intervir em estados e municípios, sem observar limites constitu-
cionais; cassar mandatos eletivos e suspender, por dez anos, os direitos políticos
de qualquer cidadão; demitir, remover ou aposentar servidores e transfer ir para a
reserva militares; decretar a perda de bens em caso de corrupção. O AI n. 5 sus-
pendia a garantia do habeas corpus no caso de crimes políticos, e de crimes contra
a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.
7 Como se sabe, os eventos políticos de maior signicado dependem não apenas
de condições subjetivas, dentre as quais as preferências dos líderes, mas também
de fatores objetivos, como é o caso da correlação de forças encontrada no País.
Não parece acurada a conclusão subjetivista de Dobson, segundo a qual os atuais
autocratas «são muito mais sosticados, esclarecidos e ágeis que foram um dia».
(DOBSON, W. e Dictator’s Learning Curve. Inside the Global Battle for
Democracy. London: Harvill Secker, p. 4, 2012.).

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