Impactos da covid-19 na democracia

AutorAdemar Borges de Sousa Filho, Aline Rezende Peres Osorio
Páginas141-176
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COLEÇÃO DIREITO CONSTITUCIONAL
Ademar Borges de Sousa Filho1
Aline Rezende Peres Osorio
2
CAPÍTULO 4
IMPACTOS DA COVID-19 NA DEMOCRACIA
1 Doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminen-
se (UFF) e graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB). Professor
de Direito Constitucional do IDP – Instituto Brasiliense de Direito Público.
E-mail: sousalhoademar@gmail.com.
2 Mestre em Direito (LL.M.) pela Harvard Law School. Mestre em Direito Pú-
blico pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente é
Secretária-Geral do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e Professora de Direito
Constitucional e de Direito Eleitoral do Centro Universitário de Brasília (UNI-
CEUB). E-mail: alineosorio@uol.com.br.
RESUMO
O presente artigo pretende examinar os impactos da pandemia da
Covid-19 na democracia a partir de duas perspectivas: (i) avaliar
como a crise da Covid-19 tem afetado a realização de eleições e
quais os riscos de manter ou adiar eleições em meio à pandemia;
e (ii) discutir a relação entre o regime (democrático ou autocráti-
co) dos governos e a capacidade de resposta estatal à crise gerada
pela pandemia, bem como traçar algumas ideias iniciais sobre as
implicações da crise atual sobre o futuro da democracia.
PALAVRAS-CHAVE
Pandemia da Covid-19; democracia; adiamento de eleições; ris-
cos de retrocesso democrático.
DEMOCRACIA E RESILIÊNCIA NO BRASIL A DISPUTA EM TORNO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988
COLEÇÃO DIREITO CONSTITUCIONAL
PATRÍCIA PERRONE CAMPOS MELLO | THOMAS DA ROSA DE BUSTAMANTE ORGANIZADORES
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INTRODUÇÃO: A PANDEMIA DA COVID-19 NO
CONTEXTO DE RETROCESSO DEMOCRÁTICO
É amplamente aceita na atualidade, a ideia de que as democracias con-
temporâneas são menos ameaçadas por golpes de estado do que por proces-
sos incrementais de erosão dos seus valores e instituições. Há uma tendência
mundial de deslocamento de democracias liberais em direção ao iliberalismo, por
meio de uma transição lenta e incremental – e não por uma reversão autoritária
imediata e completa. Não por acaso, o direito constitucional, tanto no Brasil
como em outros quadrantes, tem dado crescente importância ao fenômeno do
retrocesso democrático. Tornam-se cada vez mais comuns experiências de piora
da qualidade das democracias eleitorais, seja pela intensicação da violação a
direitos fundamentais, seja pela captura das instituições democráticas.
O consenso a respeito desse fenômeno de declínio democrático sem co-
lapso imediato da democracia é, porém, bastante recente. Em 2015, quando a
Freedom House e a Polity IV indicavam um leve declínio – de um ponto percen-
tual – do nível de democracia no mundo, Levitsky e Way armaram que a ideia
de uma recessão democrática no mundo não passava de um mito3. Considerando
que o grau de democratização no mundo permanecia praticamente inalterado
na década 2005-2015, advertiram que esse mito poderia ser explicado, em algu-
ma medida, pela falsa impressão de que, com o m da Guerra Fria, países que
enfrentaram crises de seus regimes autoritários haviam se tornado verdadeiras
democracias, quando, na verdade, experimentaram apenas um breve momento
de frágil democracia eleitoral. Levitsky e Way argumentaram que países como
Rússia e Gabão não haviam completado o ciclo da democratização, de modo
que os sinais de autocratização não poderiam ser interpretados como casos de
recessão democrática. Apesar de reconhecerem que países como Venezuela e
Tailândia passavam por retrocesso democrático, armavam que as democracias
mais recentes, como Brasil, Índia, Colômbia e Polônia, se mostraram resilientes,
apesar das condições sociais e econômicas desfavoráveis. O quadro geral, segun-
do os autores, era de relativa estabilidade democrática no mundo.
Naquele mesmo ano de 2015, contudo, Larry Diamond defendeu a tese
de que a democracia já enfrentava, àquela altura, uma recessão global na maior
3 LEVITSKY, Steven; WAY, Lucan. e Myth of Democratic Recession. Journal
of Democracy, v. 26, n. 1, p. 45-58, jan. 2015.
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ADEMAR BORGES DE SOUSA FILHO | ALINE REZENDE PERES OSORIO
COLEÇÃO DIREITO CONSTITUCIONAL
parte da década anterior e que havia um risco real de que essa recessão se apro-
fundasse nos anos seguintes4. O aumento do número de democratic breakdowns
(18 apenas de 2005 a 2014, vericado em países como Venezuela, Equador e
Ucrânia)5, a fragilização dos fundamentos do Estado de Direito em várias partes
do mundo (América Latina, Europa oriental, Ásia e África)6 e a ampliação da
inuência do discurso autoritário da Rússia e da China no mundo formavam um
conjunto seguro de sinais da recessão global da democracia7.
De 2015 para cá, a história provou que Larry Diamond tinha razão: vi-
vemos um período de retrocesso democrático, como o próprio Levitsky depois
reconheceu8. Até mesmo na Europa, onde o aprofundamento da integração pela
via da União Europeia e o aperfeiçoamento dos mecanismos supranacionais de
controle e supervisão das condições de funcionamento da democracia pareciam
imunizar um importante conjunto de países contra o risco autoritário, Hungria
e Polônia deixaram de ser democracias funcionais9. Nesses países, as eleições
4 DIAMOND, Larry. Facing Up to Democratic Recession. Journal of Democra-
cy, v. 26, n. 1, p. 141-155, jan. 2015.
5 DIAMOND, Larry. Facing Up to Democratic Recession. Journal of Democra-
cy, v. 26, n. 1, p. 141-155, jan. 2015.
6 Em estudo desenvolvido em 2011 que, com base em trinta anos de experiência,
observou redução na qualidade de 53 países. Cf. ERDMANN, Gero. Transition
from Democracy: Loss of Quality, Hybridisation and Breakdown of Democracy.
Comparative Governance and Politics, n. 1, p. 21-58, mar. 2011.
7 Cf. sobre essa ampliação da inuência econômica, política e comunicativa da
Rússia e da China, COOLEY, Alexander. Countering Democratic Norms. Jour-
nal of Democracy, v. 26, n. 3, p. 49-63, jul. 2015. Esses países têm trabalhado
intensamente para criar uma frente internacional de anti-democratas, desenvol-
vendo um novo conjunto de contra-estratégias e ferramentas legais regionais. Cf.
COOLEY, Alexander. e League of Authoritarian Gentlemen. Disponível em:
https://foreignpolicy.com/2013/01/30/the-league-of-authoritarian-gentlemen.
Acesso em: 5 nov. 2020.
8 LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de
Janeiro: Zahar, 2018.
9 Cf., sobre o retrocesso o decaimento democrático na Hungria: MOUNK, Yascha.
e People vs. Democracy: why our freedom is in danger and how to save it.
Cambridge: Harvard University Press, 2018. Cf., a respeito do retrocesso demo-

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