A cultura grega: O Problema da Igualdade e da Universalidade

AutorDr. Joaquim Carlos Salgado
Páginas47-147
segunda parte
A CULTURA GREGA: O PROBLEMA DA
IGUALDADE E DA UNIVERSALIDADE
1. A PAIDEIA
O método pelo qual se conhece a coisa, ou seja, o método do conheci-
mento, que capta na realidade externa o universal, como permanente e uno,
é o dado característico da cultura grega. Não satisfazendo ao conhecimento
as narrações míticas de sua justicação, nem os conhecimentos empíricos
fragmentários, ainda que em grande quantidade, era necessário primeira-
mente saber como saber cienticamente, isto é, descobrir o modo de conhe-
cer a realidade, com abertura para innitas possibilidades ao conhecimento
cientíco. É o que se convencionou denominar “a descoberta da razão” ou
“o milagre grego” .
Segundo o ideal de formação do homem grego, ele deveria se ver dife-
rente dos demais objetos da natureza. Passa a se preocupar não apenas com
as transformações da natureza, mas do próprio homem. Na famosa frase:
“Torna-te aquilo que és”, é possível compreender nesse imperativo que o
homem deve buscar aquilo que ele pode ser. Evidentemente, o homem não
pode o que quer. Só uma vontade divina pode o que quer. O homem, porém,
deve o que pode, isto é, se pode ser melhor, deve ser.
Através da educação, o homem deveria buscar ser aquilo que ele proje-
tava para si. Aqui a questão da medida da razão é uma questão a priori, pois
antes de tudo, como homem ou racional, a relação com o outro tem de dar-se
no reconhecimento, que implica o ver o outro como um igual. A igualdade é
nesse caso o primeiro ato de medida da razão, e que só ela pode fazer.
Como nasce a ideia de igualdade? Essa é a primeira questão que se colo-
ca na busca da ideia de justiça. É na cultura grega que se encontra o começo
ou fonte da cultura e civilização que se convencionou denominar civiliza-
ção da razão, entendida como razão cientíca ou demonstradora, a informar
todo o processo civilizatório do Ocidente. E é na losoa entendida como
vocação ou chamado para o saber, na busca da explicação radical do real,
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a ideia de justiça no periodo clássico ou da metafísica do objeto: a igualdade
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e desse modo como conhecimento metódico a implicar a separação do su-
jeito cognoscente e de um objeto que se lhe antepôe, em abertura para um
processo innito, e a marcar a diferença fundamental entre esse saber e o de
outros povos, que se dá essa razão. Nesse sentido a losoa é o saber pró-
prio do Ocidente, e constitutivo do espírito do Ocidente, cuja característica é
ter a razão como medida. É suciente lembrar o signicado de cosmos, que
traz em si o conceito de unidade de uma pluralidade, de equilíbrio, ou seja,
igual peso, harmonia, e daí partir para o conceito de igualdade, implícito
no de unidade do plúrimo. Esse começo da ciência e seu desenvolvimento
é traçado por uma atitude de fundamento, um conhecimento noético jamais
experimentado, sem precedentes históricos e sem pressupostos lógicos, pois
que se trata de conhecimento por princípios, a metafísica, nesse momento da
cultura ocidental, portal de todo conhecimento cientíco.
A cultura grega pode ser compreendida, usando uma expressão de Jäger,
a partir do ideal de formação do homem grego, de sua paidéia. É através da
paidéia que podemos entender o espírito grego, ou a psyqué grega, em três
dimensões que compõem substancialmente essa psiquê. Embora num certo
tempo histórico prevaleça um desses modelos de formação do homem gre-
go, não quer isso dizer que as outras dimensões se tenham extinguido ou não
estejam presentes. São elas, avançando a partir de Jäger, a Arete heróica, a
techne política e a sophia cientíca.
Antes, porém, de percorrer esses momentos da paidéia, convém enten-
der como se estrutura a psyqué, na qual se desenvolve o processo de conhe-
cimento, tal como a concebe o grego, principalmente na visão privilegiada
de Aristóteles.1
Partindo do clássico conceito de homem dado por Aristóteles, animal
racional (ζοόν λογικόν), de imediato percebemos duas características que
determinam as faculdades de conhecer desse ser: a sensibilidade (άισθεσις)
e o entendimento (λογος). A sensibilidade por si só não produz conhecimen-
to, pois o que é captado pelos sentidos tem de ser levado ao plano do enten-
dimento para ser pensado e gerar o conhecimento. A prevalência dos senti-
dos no processo de conhecimento produz apenas doxa, opinião individual, a
menos que se trate de uma opinião coletiva, admitida consensualmente, caso
em que se dará um conhecimento válido, do senso comum (άισθεσις κοινή),
o que é comumente aceito. Se essa verdade do senso comum é admitida
pelos sábios, passa a ter uma dimensão qualitativa, do bom senso, é eudoxa.
Este é um procedimento diaporético: a partir de uma premissa aceita, um
1 BERTI, Enrico. As Razões de Aristóteles. Trad. de Dion Davi Macedi. São Paulo: Loyola, 1998,
p. 150 segs..
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a cultura grega: o problema da igualdade e da universalidade
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endoxón, o raciocínio que aí se desenvolve é o dialético, no qual evidente-
mente está presente o entendimento, o logos.
O conhecimento rigorosamente cientíco, apodítico (apodeixis) ou ob-
jetivo, no sentido de que se impõe ao destinatário ou a quem quer que a
ele tenha acesso, desenvolve-se no plano do logos. O logos é a faculdade
de produzir conceitos, juízos e raciocínios, modo pelo qual discorre o pen-
samento, produz conceitos, relaciona-os e faz a conexão das proposições.
Faz o discurso (kriterion) da ousia, da essência.
O logos, porém, considerado na sua natureza, é concebido pelos gregos
em dois níveis: a) o da diánoia, o entendimento propriamente dito, que em
latim se denomina ratio; b) o do nous, a razão propriamente dita. Resumida-
mente podemos dizer que a diánoia é a capacidade de produzir conhecimen-
to, no caso conhecimento cientíco, por exemplo, o discurso matemático
para Platão. Ela é a responsável pela criação da ciência no sentido de epis-
teme , conhecimento necessário e universal, portanto teórico (θeωρείν) e do
argumento apodítico (αποδείζις) que se desenvolve no discorrer do logos2;
pela técnica, (τεκνή), no sentido de conhecimento aplicado e pela prudência
(φρόνεσις), no sentido de conhecimento aplicado à conduta.
O nous (νούς, que em latim é expresso com a palavra intellectus), a ra-
zão (no sentido dado em Kant, pode-se dizer) é a faculdade de conhecer os
princípios de toda ciência, da episteme em geral. A sabedoria, a sophia, em
última instância, une a diánoia, a capacidade de demonstrar, e o nous, a ca-
pacidade de conhecer os seus princípios diretamente. Platão fala em diánoia
ousan ao lado de nous no qual se desenvolve o seu pensamento e que capta
o bem diretamente, no sentido de uma intuição intelectual. Platão, como
Parmênides, toma como única sede da ciência (a Filosoa), o nous, a razão,
prescindindo totalmente do sensível. O conhecimento diretamente pela ra-
zão, o nous, dá-se num processo de três momentos: o noetón, o inteligível ou
objeto do pensar; a nóesis, a operação do nous; e a nóesis noéseos, ou seja,
“a inteligência se entende a si mesma, pois que ela é o melhor que existe,
e o pensamento é o pensamento do pensamento”.3 A phronesis, nalmente,
é a faculdade do juízo, de conduzir o particular a um universal, de unir a
demonstração da episteme, a ciência, no plano do logos, aos princípios, no
plano do nous, ou, ainda, a capacidade de deliberar sobre os meios para
2 VAZ, Henrique Cláudio de Lima. Ética e Justiça: Filosoa do agir humano. In: Síntese, Nº 75, 1996,
p. 443.
3 ARISTÓTELES, Metafísica, Livro XII (∟), cap. 9. Ver SALGADO,Joaquim Carlos. A Ideia de
Justiça em Hegel. São Paulo: Loyola,1996, p. 211 e segs. Ver, ainda, VAZ, H. C. de Lima. Escritos
de Filosoa VII, p. 228.
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