A cultura romana: O Estado, o Direito e a Justiça

AutorDr. Joaquim Carlos Salgado
Páginas149-222
terceira parte
A CULTURA ROMANA: O ESTADO, O
DIREITO E A JUSTIÇA
1. O ESPÍRITO DE ROMA: O ESTADO UNIVERSAL, O
DIREITO UNIVERSAL, A RELIGIÃO UNIVERSAL E O SABER
UNIVERSAL
A feliz coincidência, no espaço e no tempo, do evento Cristo, a conso-
lidação do Império de Augusto e a institucionalização dos responsa pru-
dentium pelo Imperador, além do forte valor simbólico, constituiu o núcleo
determinante da cultura ocidental, consolidado no Estado universal, na Re-
ligião universal e no Direito universal, as poderosas forças que formam a
substância do espírito do Ocidente. Não se faz hipótese do passado históri-
co, mas é, de qualquer modo, impensável o Cristianismo, seu universalismo
e permanêcia histórica, sem as bases sociais, econômicas, culturais e políti-
cas estabelecidas por Augusto. “O imperador romano Augusto, na verdade
faz parte da história cristã da salvação, e reconhecer o dedo de Deus e sua
Providência nos acontecimentos histórico-políticos não me parece ser anti-
cristão”, diz Carl Schmitt.1
A descoberta da razão epistêmica pelos gregos é o traço característico da
cultura ocidental. E por ser a razão a sede do universal, é essa cultura tam-
bém denida por seu espírito universal.2 Em razão disso vamos encontrar o
universalismo da ciência entre os gregos e, em Roma, da religião no Cris-
tianismo , do Estado e do direito. O universalismo é nesses povos o traço
característico do processo de racionalização da sua cultura, como observa
Max Weber.3
Metodologicamente, a premissa a partir da qual é desenvolvido este tex-
to é a armação de Ihering no seu clássico livro O Espírito do Direito Romano:
1 SCHMITT, Carl. Teologia Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 118.
2 Cfr. SALGADO, Joaquim Carlos. A Ideia de Justiça no Mundo Contemporâneo. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006, p. 90.
3 SALGADO, Op. Cit., p.42.
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a ideia de justiça no periodo clássico ou da metafísica do objeto: a igualdade
joaquim carlos salgado
“Três vezes Roma ditou leis ao mundo e por três vezes serviu de laço de
união entre os povos: pela unidade do Estado...; pela unidade da Igreja,...,
e... pela unidade do Direito,...”4
No que concerne propriamente ao Estado ocidental é o universalismo de
Augusto o marco denitivo de seu nascimento. Se os gregos inauguraram a
rica dimensão da cultura ocidental, absorvida pelos romanos, é Roma a úni-
ca criadora dessa civilização no que se refere à organização política e militar
e à ordenação jurídica5. “Augusto pretendia construir o mundo de pax, e
não simplesmente cultivar uma igualdade interna” como era a inspiração do
estoicismo. “Pretendia a construção da sociedade justa na terra, a sociedade
da paz como se depreende das Res Gestae Divini Augusti. Universalidade
política na particularidade religiosa de Augusto”, vez que sua religião não
tinha a pretensão de universalidade, mas trazia em si a dimensão universa-
lizante decorrente da tolerância, e manifestada jurídica e politicamente “no
instituto jurídico do tratado”, segundo o ius feciale.6 É interessante notar
como o universalismo de Augusto se mostra na tolerância religiosa, neces-
sária para a compreensão de outros povos e extensão do Estado imperial.
O universalismo da tolerância teria mais tarde de entrar em conito com o
Cristianismo, pois este era monoteísta, de caráter exclusivista, teocrático e
separatista7, ao contrário da religião politeísta romana.
O universalismo do Império de Augusto lançou os fundamentos da uni-
dade da Europa e que Carlos Magno, denominado também Pai da Europa
(Vater Europas), recuperou após a queda do Império, mas já com a força da
fé cristã a dirigir essa unidade, quando, rei dos francos, em 25 de dezembro
de 800, é coroado pelo Papa Leão III como Imperador da Europa, também
com a denominação de Augustus8, como consta dos Anais. Essa unidade é
retomada econômica e politicamente no pós-guerra.9 Que outra pretensão
4 “Trois fois Rome a dicté des lois au monde, trois fois elle a servi de trait d’union entre les peuples:
par unité de l’État, d’abord, lorsque le peuple romain était encore dans la plénitude de sa puissance;
par l’unité de l’Église, ensuite, après la chute de l’empire romain, et la troisième fois enn, par
l’unité du Droit...” IHERING, Rudolf von. L’Ésprit du Droit Romain dans les diverses fases de son
développment. Trad. par A. de Meulenaere. Paris: Librairie A Marescq, MDCCCLXXXVI, p. 1.
5 Cfr. GIGON, Olof. Nachwort. In: CICERO, Marcus Tullius. Gespräche in Tusculum. München:
Heimeran Verlag, Lateinisch-deutsch, 1979, p.415.
6 SALGADO, Op. Cit., p.43.
7 Cfr. PLESCIA, Joseph. The bill of rights and roman law: a comparative study.Bethesda: Austin/
Wineld,1995, p.47.
8 Cfr. SCHIEFFER, Rudolf. Der König der Franken wird Augustus. In: Id. Das Reich Karls des Gros-
sen. Hrsg. v. Marlene P. HILLER. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2011, S. 54-55.
9 Cr.SCHNEIDMÜLLER, Bernd. Karl der Grosse lebt weiter. In: Das Reich Karls des Grossen.
Hrsg. von Marlene P. HILLER. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 2011, s. 115 u.
folg. O Autor mostra o valor simbólico da Medalha Carlos Magno da Cidade de Aachen (Karlspreis
der Stadt Aachen) concedida a várias personalidades internacionais como: o fundador do Movimento
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do Imperador Napoleão senão a unidade de origem da Europa, que sempre
brota da sua também profunda diversidade, decorrente da vocação livre das
suas nações e culturas, unidade e diversidade alimentadas pelas condições
históricas, sejam elas materiais ou espirituais?
Com relação ao direito, nem há que se fazer comparações. O incipiente
direito grego nem de longe pode ser comparado com o romano. O elevado
nível de abstração a que o direito romano chegou deu-lhe o status da univer-
salidade, de forma a cumprir uma missão de permanência no tempo e de ex-
tensão mundial, ao contrário do direito grego “preso fortemente às situações
dos casos singulares”10. Haja vista a técnica sosticada, a racionalidade, a
precisão de conceitos e de categorias, de institutos, da linguagem adequada
(pois “da confusão das palavras surge a anarquia do pensamento”, segundo
Bergbohm, citado por Somló,11 de redação concisa das regras do Direito das
Coisas, como a propriedade e a posse, e seus desdobramentos; do Direito
das Obrigações, como o contrato à base do livre arbítrio, e suas espécies, a
responsabilidade contratual e a decorrente de ilícito; a divisão entre pessoas
e coisas, de modo a enquadrar o escravo entre as coisas; a estruturação do
processo, pela actio, na fase de competência do pretor (de direito) e do judex
(de fato),12 criando os princípios fundamentais do processo, o terceiro neutro
e impessoal, a ampla defesa e o contraditório, tudo isso a constituir um passo
abissal diante dos rudimentos do processo grego, fundado no júri composto
por várias pessoas (cem ou mais), a facilitar as manipulações emotivas e
demagógicas, e assim por diante. Tanto na elaboração como na aplicação, o
direito em Roma aparece na forma de justiça formal e de justiça material.13
1.1 O ESTADO UNIVERSAL
Uma teoria da justiça tem de assumir as duas dimensões, a do dever
ser e do ser, do ideal e do real, da norma e da sua ecácia, da liberdade e
do poder, enm de uma teoria do direito e de uma teoria do Estado. E uma
teoria do Estado tem de levar em consideração a vocação para o absoluto
que a razão no Ocidente aspirou representar na sua religião e ousar conhecer
na Teologia e, por denitivo, na Filosoa. Ora, as três grandes contribuições
Pan-Europa em 1950, Richard Nikolaus, Conde de Coudenhove-Kalergi, Jean Monnet, Konrad
Adenauer, Winston Churchill, Václav Havel, Bill Clinton e o Papa João Paulo II.
10 WESEL, Uve. Juristische Weltkunde. Eine Einführung in das Recht. Frankfurt: Suhrkamp, 8., 2.000,
p. 52.
11 Cfr. SOMLÓ, Felix. Begriff des Rechts. In: Maihofer, Werner (Hsgr.). Begriff und Wesen des
Rechts. Darmstadt:Wissenschafkiche Buchgesellschaft, 1973, S.428.
12 WESEL, op. cit., p. 50 e segs.
13 Ver SALGADO, A Ideia de Justiça no Mundo Contemporâneo, p.102 a 251.
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