O espírito do ocidente ou a razão como medida

AutorDr. Joaquim Carlos Salgado
Páginas13-45
primeira parte
o EsPírIto do oCIdEntE
ou A rAZão CoMo MEdIdA
1. A CulturA E CIvIlIZAção grECo-roMAnA
Na medida em que o Ocidente construiu uma cultura e civilização da
razão, mas de ordem planetária, ainda que na forma instrumental, é legítimo
que ela mesma postule alcançar o seu próprio signicado. Uma vez que se
caracteriza como civilização da razão é lícito que a própria razão indague de
si mesma ou – por que não dizer? – busque a razão da razão.
Se ela é o vetor dessa civilização e se é da sua natureza não apenas
constatar a racionalidade dessa civilização, mas indagar do que ela mesma
é, não há outro caminho senão a volta sobre si mesma para dar razão de si e
navegar no cinzento, ou seja, em que a losoa pinta o cinzento no cinzento,
a que se refere Hegel ou diz o mesmo sobre o mesmo (auté káth’auten) de
Platão. Eis como não se pode simplesmente expulsar da cultura a metafísica
e proceder “cabeça com cabeça” (Unamuno) segundo a direção do cajado
do pastor.
Razão da razão, sim, porque só ela pode dar razão de si, enquanto “dar ra-
zão”, pois se ela é a única faculdade de julgar, só ela pode instaurar o seu próprio
tribunal. A crítica da razão, o julgamento da razão, só ela mesma pode fazer, vez
que não há no ser humano outra faculdade de julgar. Por isso é legítima a preten-
ção de Kant de instaurar um tribunal da própria razão para que ela mesma saiba
dos seus limites, da sua medida, se é que para ela há algum limite.
E no momento de volta para si, de si para si, eis o modo mais autêntico
de manifestação da liberdade, enquanto interioridade radical. Eis porque a
tarefa ingente da Filosoa é a reexão sobre a liberdade, ou seja, “unir dia-
leticamente Liberdade e Razão é a única tarefa da Filosoa”, na expressão
de Lima Vaz.1
1 LIMA VAZ, Henrique Cláudio de. Escritos de Filosoa III ― Filosoa e Cultura. São Paulo:
Ed. Loyola, 1997, p. 80.
joaquim salgado_a ideia.indb 13 21/05/2018 15:15:57
14
a ideia de justiça no periodo clássico ou da metafísica do objeto: a igualdade
joaquim carlos salgado
A descoberta da razão pelos gregos instaura denitivamente uma cultura
da razão; é o traço característico da cultura ocidental. E por ser a razão a
sede do universal, é essa cultura também denida por seu espírito universal.2
Em razão disso vamos encontrar o universalismo da ciência entre os gregos
e, em Roma, o da religião no Cristianismo, do Estado e do direito. O univer-
salismo é nesses povos o traço característico do processo de racionalização
da sua cultura, como observa Max Weber.3
Quando se fala da civilização ocidental, tem-se de considerar imediata-
mente os dois vetores essenciais da sua formação: a cultura greco-romana
e o Cristianismo. A cultura greco-romana é a responsável pela formação ra-
cional do espírito livre do Ocidente, teorética, pratica e poieticmente (como
razão poiética está ela também determinada externamente pelo objeto do
fazer técnico). O evento Cristo constitui o ômega simbólico ou o destino da
liberdade na forma da representação religiosa.
Na perspectiva do vetor da racionalidade greco-romana, pode-se encon-
trar um desdobramento dos modos de a razão atuar no mundo. Ela o faz na
medida em que busca um determinado m: a) A razão poiética 4, na esfera
do fazer, cuja nalidade é, através da técnica (meio) alcançar um resultado
(m). Neste caso, pode buscar o belo como resultado, então é uma razão
estética, ou um resultado útil, como razão pragmática; b) A razão teoré-
tica, na esfera do conhecer, cuja nalidade é encontrar a verdade, caso em
que poderá buscá-la na forma da fé, razão mítica; na lida com o mundo
da aparência, como razão doxal; ou na busca da essência dessa realidade,
como razão epistêmica. c) A razão prática, na esfera do agir, quer na busca
do bem (honestum), portanto na ética; quer na busca do justo (iustum), no
direito; quer na do conveniente (decorum), no político.5
Conhecer (theorein), agir (pratein), e fazer (poiein) são os três mo-
dos pelos quais a razão atua e determina, estabelecendo medidas e limites.
Aqui serão consideradas as formas plenamente livres de a razão conduzir a
2 Cfr. SALGADO, Joaquim Carlos. A Ideia de Justiça no Mundo Contemporâneo. Belo Horizonte:
Del Rey, 2006, p. 90.
3 Id. Ibid., p.42. WEBER, Max. Sociologie Du Droit. Tradução de Jacques Grosclaude. Paris: P.U.F.,
1986,p.162.
4 Cfr.YEBRA, Valentín García, nota n. 1. In: ARISTÓTELES. Poética. Ed. trilingue, grego/latim/es-
panhol. Madrid: Editorial Gredos, 1992, p. 243. O termo poiética, portanto, é usado aqui no sentido
genérico, de fazer com vista a um resultado ou produto, reservando-se a forma aportuguesada, poé-
tica, para a disciplina ensinada por Aristóteles, Perì Poietikês, “sobre a arte da composição poética”,
evitando-se entrar na discussão que se trava em torno do signicado do termo
5 Os termos honestum, justum e decorum são próprios de Christianus THOMASIUS em Fundamenta
Juris naturae et gentium ex sensu communi, in quibus ubique sernuntur principia honesti, iusti et
decori, cum adjuncta emendatione ad ista fundamenta institutionum iurisprudentiae devinae (1705).
Darmstadt: Scientia, 1979, p. 177.
joaquim salgado_a ideia.indb 14 21/05/2018 15:15:57
primeira parte
o espírito do ocidente ou a razão como medida
15
formação do Espírito do Ocidente. Desse modo, será considerada na sua
aptidão de conhecer e de agir, enquanto o agir é considerado em si mesmo
como bom. Não se considera a ação do ponto de vista dos seus efeitos
externos, de uma ação avaliada segundo o seu resultado, do “agir ecaz-
mente” (ou “princípio eciente”, segundo outras traduções), na expressão
de Aristoteles.6
Parte-se aqui de uma premissa básica, segundo a qual a sede da liber-
dade é a razão. Em virtude disso sempre que o homem usa a razão para
qualquer situação age com liberdade, ainda que seu ato não seja totalmente
determinado pela razão. Desse modo, a razão poiética introduz uma dimen-
são de liberdade na realidade em que ela atua, caracterizando-se essa liber-
dade como domínio da natureza. O modo pelo qual a razão atua na realidade
externa é a técnica, A razão poiética desenvolve-se como um processo con-
duzido pelas regras técnicas por ela elaboradas, segundo as determinações
dessa realidade. Esse processo culmina num resultado, num produto, pelo
qual sua ação é avaliada. Esse procedimento como um todo é a poiesis.
Como a razão estabelece limites e ao mesmo tempo se limita na produção
poiética, ensina o riquíssimo percurso da evolução tecnológica que experi-
mentou o Ocidente, quer no que tange à natureza, quer no que se refere à
sociedade, principalmente num dos aspectos mais importantes da vida so-
cial, a política, na medida em que se dene como técnica de alcançar e de
conservar o poder, segundo o correto entendimento de Maquiavel.7 A razão
poiética, embora não possa determinar a realidade por si mesma, pois tem
de submeter-se às suas leis, é ainda assim livre, porque é por meio da sua
ação sobre a realidade que o homem a domina, se faz com isso mais livre,
libertando-se do seu determinismo, controlando-a através das suas leis, pela
razão elaboradas ou descobertas.
2. A rAZão tEorétICA8
Tudo isso que acima foi dito quer signicar simplesmente que a razão
é na cultura ocidental, desde o início, medida: medida de si mesma e do
real; do real no plano do conhecer, do fazer e do agir. Na esfera teorética,
a razão mede o teor de verdade do conhecimento, na do ético ou prático, a
6 ARISTÓTELES, Física,189 b 8-16.
7 Sobre a atuação da razão poiética na organização política ou do poder e sua oposição com a razão
ética do poder, ver SALGADO, Joaquim Carlos. Estado Ético e Estado Poiético. In: Revista do
Tribunal de Contas de Minas Gerais, Belo Horizonte, ano XVI, n.2, v.2, 1998.
8 Ver SALGADO, J. C. O Espírito do Ocidente ou a Razão como Medida. In: Cadernos de Pós-Gra-
duação em Direito – Universidade de São Paulo. São Paulo: Manole Editora, 2012. Trata-se de um
curso ministrado por mim no Programa de Pós-Graduação daquela Instituição.
joaquim salgado_a ideia.indb 15 21/05/2018 15:15:57

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT