Cultura, revolução tecnológica e os direitos autorais

AutorAllan Rocha de Souza
Páginas717-734
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CULTURA, REVOLUÇÃO TECNOLÓGICA
E OS DIREITOS AUTORAIS
Allan Rocha de Souza
Sumário: 1 Introdução: tecnologia e transformação social. 2 Comodicação da informação
e da cultura. 3 Arte e cultura. 4 O gosto pela arte. 5 Comunicação e identidade na sociedade
contemporânea. Referências.
1. INTRODUÇÃO: TECNOLOGIA E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL
Os processos naturais da vida biológica não transcorrem linearmente. Ao contrário,
são intercalados momentos de longa estabilidade pontuados por períodos de intensa
transformação.1 Os processos históricos parecem padecer da mesma característica e, ao
se observar a sociedade contemporânea, é patente o acelerado e profundo processo de
mudança social em andamento.2
As interdependências no plano global e o multiculturalismo são vistos como ca-
racterísticas marcantes dos tempos atuais.3 Igualmente característico dessa época é a
fragilidade das tradições como fator de coesão e a reformulação das estruturas e relações
sociais, transformando constante e velozmente as experiências individuais e, por isso
mesmo, causando forte sensação de insegurança e ansiedade.4
A intensidade e alcance das mudanças impõem ao estudo jurídico uma especial
atenção às transitoriedades socioculturais e particular esforço na renovação dos institutos,
de maneira a adequá-los às novas formas de relação entre indivíduos e coletividades, aos
movimentos dinâmicos de reelaboração do Ser e à contínua reformulação das estruturas
econômicas. Nesse cenário, a reconf‌iguração da ratio, a superação da estaticidade e a
incorporação de novos elementos de análise tornam-se mister à legitimidade e funcio-
nalidade do Direito.
1. O paleontólogo Sthephen J. Gould denomina esse processo de punctuated equilibrium, asseverando que os elemen-
tos geológicos e paleontológicos jamais indicaram uma história gradual, suave, lenta da vida na terra (GOULD,
Sthephen J. The panda’s thumb. New York: W. W. Norton, 1992. p. 266).
2. Há diversos nomes atribuídos a essa etapa histórica da humanidade, dentre os quais se destacam pós-modernidade,
alta modernidade, sociedade pós-industrial, era da informação, sociedade do conhecimento.
3. Manuel Castells propõe que esse mundo multicultural e interdependente “só poderá ser entendido e transformado
a partir de uma perspectiva múltipla que reúna identidade cultural, sistemas de redes globais e políticas multidi-
mensionais” (CASTELLS, Manuel. A era da informação: economia, sociedade e cultura: sociedade em rede. São
Paulo: Paz e Terra, 1999. v. 1, p. 43).
4. Zygmunt Bauman caracteriza esse momento histórico como ref‌lexos de uma modernidade líquida. (BAUMAN,
Zygmunt. Liquid modernity. Cambridge: Polity Press, 2000).
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ALLAN ROCHA DE SOUZA
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A revolução tecnológica é um dos elementos mais representativos desses tempos.
As inovações ocorridas com as tecnologias da informação destacam-se pelo seu impacto
social, econômico e político. Como elementos da cultura material de dada sociedade,
reelaboram os processos de comunicação, reorganizam a produção econômica, inter-
medeiam novas formas de relacionamento. A penetrabilidade dessas tecnologias na
sociedade justif‌ica sua utilização como ponto de partida da ref‌lexão sobre as mudanças
em andamento na sociedade atual.5
A relação entre sociedade e tecnologia é dinâmica e não determinística. As trans-
formações tecnológicas dependem de muitos fatores em complexo padrão interativo.6 É
provável que, embora não determine, a sociedade pode, através dos poderes constituídos,
sufocar ou alavancar o desenvolvimento tecnológico.7 Dois apontamentos podem ser
elaborados sobre essas relações: o primeiro se refere ao papel dos governos; e o segundo,
às características das tecnologias e seus entrelaçamentos sociais.
Com relação às funções do Estado, é importante ressaltar seu papel decisivo, tanto
na promoção quanto na restrição à inovação e difusão tecnológica. Entre os fatores que
podem levar a uma estagnação tecnológica induzida8 destaca-se o receio dos governantes
dos possíveis impactos da transformação tecnológica sobre a estabilidade social e polí-
tica.9 Ao mesmo tempo, podem os poderes constituídos promover o desenvolvimento
da tecnologia através da organização das forças produtivas, incentivo e direcionamento
da inovação e difusão tecnológica.10
Os próprios elementos sociais constitutivos da tecnologia e seus usos parecem
ser condicionados pelo processo histórico de seu desenvolvimento. Os fatores que in-
5. Esse é o mesmo elemento utilizado para o início da ref‌lexão sobre as transformações em andamento em Manuel
Castells: “Devido a sua penetrabilidade em todas as esferas da atividade humana, a revolução da tecnologia da
informação será meu ponto inicial para analisar a complexidade da nova economia, sociedade e cultura em for-
mação” (Op. cit. p. 24).
6. Sustentado principalmente por Joel Mokyr. The lever of riches: technological creativity and economic progress.
New York: Oxford University Press, 1990; Wen-yuan Qian. The great inertia: scientif‌ica stagnation in traditio-
nal China. Londres: Croom Helm, 1985, como exemplo o autor aponta a China, país extremamente avançado
tecnologicamente até 1400, quando, sob as dinastias Ming e Qing, perderam interesse na inovação tecnológica,
resultando numa estagnação que durou séculos e possibilitou a mudança no poder global em favor da Europa.
Um outro exemplo, mais recente, explorado pelo autor, é a falha da antiga URSS em dominar e acompanhar a atual
revolução tecnológica – talvez pelas características dessa mesma revolução. O Japão é igualmente indicado, mas
como contraexemplo. Ver: CASTELLS, Manuel. Op. cit. p. 27 e ss.
7. Pode-se utilizar, como faz Castells, o exemplo da atual revolução tecnológica, em que, a partir da Califórnia dos
anos 1970, um segmento da sociedade norte-americana, em interação com elementos da economia global e geopo-
lítica mundial, a partir de uma cultura da liberdade, inovação e empreendedorismo, concretizou “um novo estilo
de produção, comunicação, gerenciamento e vida, que foi mundialmente difundido e apropriado e adequado às
mais diversas culturas e usos, que por sua vez acelerou a velocidade, aumentou o escopo e diversif‌icou as fontes
da transformação tecnológica” (CASTELLS, Manuel. Op. cit. p. 25).
8. Carece de estudos qualif‌icados a análise dos efeitos das barreiras informáticas praticadas no Brasil na segunda
metade da década de 1980.
9. MOKYR, Joel. Op. cit. apud CASTELLS, Manuel. Op. cit. p. 28.
10. O autor assevera que “o que deve ser guardado para o entendimento da relação entre a tecnologia e a sociedade é
que o papel do Estado, seja interrompendo, seja promovendo, seja liderando a inovação tecnológica, é um fator
decisivo no processo geral, à medida que expressa e organiza as forças sociais dominantes em um espaço e uma
época determinados. Em grande parte, a tecnologia expressa a habilidade de uma sociedade de impulsionar seu
domínio tecnológico por intermédio das instituições sociais, inclusive o Estado. O processo histórico em que este
desenvolvimento de forças produtivas ocorre assinala as características da tecnologia e seus entrelaçamentos com
as relações sociais” (CASTELLS, Manuel. Op. cit. p. 31).
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