Da satisfação garantida do direito de propriedade à obsolescência programada do Estatuto da Cidade: Primeira Parte / From the guaranteed satisfaction of right to property to the programmed obsolescence of the statute of the city: Part I

AutorSuzana Maria Loureiro Silveira, Josué Mastrodi
CargoDoutor em filosofia e teoria geral do direito pela Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de Direito e do programa de pós-graduação stricto sensu em sustentabilidade da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. E-mail: mastrodi@puc-campinas.edu.br. - Pós-graduanda em Direito Urbanístico e Ambiental pela PUC-Minas. Aluna Especial...
Páginas1-32
Revista de Direito da Cidade vol. 10, nº 1. ISSN 2317-7721
DOI: 10.12957/rdc.2018.29204
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O estudo realizado propõe afirmar que as normas de direito urbanístico constantes do Estatuto
da Cidade determinam a restrição do uso antissocial da propriedade privada, a fim transformar
a cidade em território de inclusão socioespacial. O direito à cidade não pode ser afirmado
enquanto espaços urbanos permanecerem vazios (não utilizados, subutilizados ou
superutilizados), portanto, tem-se a restrição ou extinção (em casos de desapropriação) do
exercício do direito à propriedade privada que não esteja cumprindo a função social como
objetivo deste artigo. A partir do método hipotético dedutivo, a hipótese deste artigo foi
desenvolvida no seguinte sentido: à revelia da construção da função social da propriedade
(encarado como requisito elementar para o exercício do direito de propriedade), as teorias
civilistas resguardam o caráter de exclusividade das propriedades privadas. Uma abordagem a
partir da restrição da propriedade privada pela utilização de instrumentos urbanísticos nos
permite apontar como e em que medida esses mecanismos limitadores do mau uso (falta de
uso, subutilização e superutilização) podem contribuir para que o território urbano não seja
constituído por espaços de ociosidade ou superutilização. Numa segunda parte, a ser
oportunamente publicado, tratar de duas formas de intervenção pública no espaço da cidade,
inclusive no espaço privado, normativamente identificadas como instrumentos jurídicos e
urbanísticos constantes do Estatuto da Cidade, a Desapropriação e as Zonas Especiais de
Interesse Social.
- Estatuto da Cidade. Direito à cidade. Direito à propriedade privada. Função
Social. Desapropriação. Zonas Especiais de I nteresse Social.
In this paper we propose to affirm that the norms of urbanistic law contained in Brazilian
Estatuto da Cidade restrict antisocial uses of private property, in order to transform the city into
a territory of socio-spatial inclusion. The right to the city cannot be affirmed while urban spaces
remain empty, underused and overused so there is a restriction of the exercise of the right to
private property that is not fulfilling the social function as objective of this article. Based on the
hypothetical-deductive method, the hypothesis of this article was developed as follows: in the
1 Esta pesquisa foi desenvolvida com o apoio da Fundação e Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo,
FAPESP.
2 Doutor em filosofia e teoria geral do direito pela Universidade de São Paulo. Professor da Faculdade de
Direito e do programa de pós-graduação stricto sensu em sustentabilidade da Pontifícia Universidade
Católica de Campinas. E-mail: mastrodi@puc-campinas.edu.br.
3 Pós-graduanda em Direito Urbaníst ico e Ambiental pela PUC-Minas. Aluna Especial da Universidade
Estadual de Campinas - UNICAMP, departamento de Demografia, vinculado ao Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas - IFCH. Integrante do grupo de pesquisa Direito e Realidade Social. Bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). E-mail: suzanamlsilveira@gmail.com.
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absence of the construction of the social function of property (viewed as an elementary
requirement for the exercise of the right to property), civilist theories preserve the character of
exclusiveness of private properties. An approach based on the restriction of private property by
the use of urbanistic tools allows us to point out how and to what extent these mechanisms
that limit the misuse (or lack of use), underuse and overuse of private property may contribute
for refraining the urban territory from being idle spaces. In Part II of this article, that will be
presented in the due course, we discuss on two specific forms of public intervention in the city
territory, normatively identified as legal and urbanistic instruments included in the Estatuto da
Cidade, the Expropriation and the Special Z ones of Social Interest.
Estatuto da Cidade Right to the city. Right to the private property. Social function.
Expropriation. Special Zones of Social Int erest.
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Inicialmente, partindo do aspecto socioespacial urbano,5 foi traçado como objetivo
deste artigo analisar a possibilidade de restringir ou extinguir o exercício do direito de
propriedade privada de imóveis urbanos que não cumpram a função social. Como consequência
desta limitação ou extinção do domínio privado, identificamos instrumentos urbanísticos
previstos no ordenamento jurídico visando à ocupação de imóveis em casos que o legislador
federal vinculou a concepção da função social da cidade e da propriedade privada, tratam-se de
casos que, seja pelo desuso, subutilização ou superutilização, há o dever de o Administrador
Público intervir no imóvel ocioso ou superut ilizado.
4 O título deste artigo é inspirado na letra da música Terceira do plural, faixa musical do álbum Surfando
Karmas & DNA, lançado em 2002 pela banda Engenheiros do Hawaii. O compositor da música, Humberto
Gessinger, critica o sistema de produção vigente e a lógica que delineia o padrão de c onsumo, trazendo,
por meio de fatos cotidianos, a demonstração de como somos postos a nos conformar com o que as
regras de mercado nos mandam fazer. Para o sentido do trabalho apresentado, existe uma
despretensiosa tentativa bem sucedida, seja pela existência de normas jurídicas já positivadas ou pela
criação de outras normas, de conferir à propriedade privada proteção em seu mais alto grau, mantendo-
lhe sua exclusividade (razão pela qual pontuamos a “satisfação garantida do direito de pro priedade”).
Com relação à “obsolescência programada do Estatuto da Cidade”, entendemos que, por mais que
normas jurídicas venham revestidas de um caráter mais preocupado com a alteração da realidade social,
a resistência oriunda das regras de mercado (que entre outras permissões, autorizam que exista uma
reserva especulativa) relacionada à proteção de determinados institutos (como é o caso da propriedade
privada) ainda é um fator impeditivo a uma efetiva mudança nos espaços urbanos.
5 A cidade pode ser estudada a partir de diversos aspectos, como cultural, econômico, social e espacial
(esses últimos, isoladamente), porém pelo recorte epistemológico da pesquisa desenvolvida,
apresentamos um estudo tendo como base o aspecto socioespacial por abordar questões
especificamente voltadas à organização territorial da cidade por meio do seu caráter socialmente
includente.
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Com o advento do Estatuto da Cidade, lei federal que passou a regulamentar a política
urbana positivada pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB de 1988),
o Administrador Público no cumprimento de suas atribuições está vinculado ao princípio da
eficiência, o que, em termos de direito urbanísticos e especificamente da proposta deste artigo,
tem a ver com ao aplicar a lei de ofício condicionando os imóveis privados urbanos ao
cumprimento da função social estabelecida pelas exigências normativas específicas a cada
município e descartando os extremos, nocivos ao espaço urbana e impeditivos à função social,
identificados pela falta de uso ou pela excessiva utilização do solo superutilização (casos de
especulação imobiliária).
A base normativa desta pesquisa compreende, em especial, a Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 (CRFB de 1988) e a Lei nº 10.257 de 2001 Estatuto da Cidade.
A ideia de se abordar a restrição e a extinção da propriedade privada, a partir do estudo
dos instrumentos de direito urbanístico previstos nas normas mencionadas, é apontar como e
em que medida tais mecanismos limitadores do mau uso (ou mesmo da falta de uso) dos
espaços privados acarreta ociosidade dos espaços da cidade, com a acentuação da segregação
socioespacial.
Para realizar o estudo apresentado, tem-se como objetivo específico questionar a
definição e implementação dos instrumentos da Desapropriação e das Zonas Especiais de
Interesse Social (ZEIS), uma vez que, conjuntamente aplicados, permitem a transformação de
espaços urbanos ociosos ou superutilizados em bens de uso comum ou destinados ao interesse
social (por exemplo, dotar o espaço privado que descumpriu a função social de equipamentos
de infraestrutura voltados à prestação de serviços públicos, por exemplo, construção de
creches, unidades de saúde, disposição de transportes coletivos, criação praças e parques
voltados para uso coletivo etc.), assim como a destinação de parte do imóvel para construção
de moradias de interesse social, o que permite transformar o território urbano segundo a
função social da cidade. Antes negociado no mercado, o imóvel agora é parcialmente retirado
do mercado para ser oferecido ao convívio d e seus moradores.
Ou seja, havendo propriedade privada urbana que não observe a função pela qual foi
instituída, nasce a possibilidade (na verdade, nos termos deste artigo, o dever) de o Poder
Público estabelecer balizas públicas ao domínio privado da cidade, sendo duas das diversas
formas de intervenção do Estado na propriedade privada já previstas em normas positivadas de
Direito Urbanístico, os dois instrumentos aqui apresentados, quais sejam: Desapropriação para
fins de reforma urbana (sendo considerada uma intervenção de ordem supressiva do domínio

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