Desafios contemporâneos da justiça administrativa na América Latina

AutorRicardo Perlingeiro
CargoProfessor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (Niterói-RJ, Brasil). Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho (Rio de Janeiro ? Rio de Janeiro, Brasil)
Páginas167-205
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Como citar esse artigo/How to cite this article: PERLINGEIRO, Ricardo. Desaos contemporâneos da justiça administrativa na
América Latina. Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 1, p. 167-205, jan./abr. 2017. DOI: 10.5380/rinc.v4i1.50155.
* Texto-base da conferência Reform of Administrative Justice in Latin America, ministrada no Seminário internacional Adminis-
trative justice: comparative and Russian contexts, em Tyumen, República Federativa da Rússia, nos dias 29 e 30 de setembro
de 2016, no âmbito do II Fórum Jurídico Siberiano destinado ao Direito Processual Administrativo Russo. As teses apresentadas
neste artigo decorrem de estudos iniciados quando da conferência ministrada no Seminário Perspectivas comparativas de la
Justicia Administrativa, organizado pelo Centro de Investigación y Docencia Económica (CIDE), na Cidade do México, em 7 de
fevereiro de 2014, e cujo conteúdo levou às seguintes publicações: O devido processo administrativo e a tutela judicial efetiva:
um novo olhar?, na Revista de Processo, São Paulo, v. 239, p. 293-331, jan. 2015, e Justiça administrativa no Brasil: uma jurisdição
administrativa judicial, extrajudicial ou híbrida?, na Revista CEJ, Brasília, Ano XVIII, n. 62, p. 71-78, jan./abril 2014. Agradecimen-
tos a Alexandre Arruda, Bernard Reis, Carmen Silvia Arruda e Flavia Martins Aonso, doutorandos em direito na Universidade
Federal Fluminense (UFF), e Graziela De Caro e Anna Gabriela Costa, graduandas em direito na mesma universidade, e Juliana
Perlingeiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
** Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (Niterói-RJ, Brasil). Doutor e Mestre em Direito
pela Universidade Gama Filho (Rio de Janeiro – Rio de Janeiro, Brasil). Pesquisador convidado do Deutsches Forschungsinstitut
für öentliche Verwaltung Speyer – FÖV (Speyer, Alemanha) (2006-2007). Coordenador brasileiro do Projeto DAAD Justiça Ad-
ministrativa e fortalecimento do Estado de Direito na América Latina (2009-2012). Desembargador Federal do Tribunal Regional
Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro, Brasil). E-mail: ricardoperlingeiro@id.u.br.
Revista de Investigações Constitucionais
ISSN 2359-5639
DOI: 10.5380/rinc.v4i1.50155
Desaos contemporâneos da justiça
administrativa na América Latina*
Contemporary challenges in Latin
American administrative justice
RICARDO PERLINGEIRO**
Universidade Federal Fluminense (Brasil)
ricardoperlingeiro@id.u.br
Recebido/Received: 12.01.2017 / January 12th, 2017
Aprovado/Approved: 06.02.2017 / February 6th, 2017
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Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 1, p. 167-205, jan./abr. 2017.
Abstract
his study consists of a critical comparative analysis of the
administrative justice systems in eighteen Latin-American
signatory countries of the American Convention on Human
Rights (Argentina, Bolivia, Brazil, Chile, Colombia, Costa
Rica, El Salvador, Ecuador, Guatemala, Honduras, Mexico,
Nicaragua, Panama, Paraguay, Peru, the Dominican Re-
public, Uruguay and Venezuela). According to this article,
the excessive litigation in Latin-American courts that has
seriously hampered the eectiveness of the administrative
justice systems may be explained as follows: as former Iberi-
an colonies, the aforementioned countries have a Continen-
tal European legal culture (civil law) but nevertheless have
Resumo
O presente estudo consiste em uma análise crítica com-
parada dos sistemas de jurisdição administrativa nos 18
países latino-americanos de origem ibérica, sujeitos à
Convenção Americana de Direitos Humanos (Argentina,
Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador,
Equador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Pa-
namá, Paraguai, Peru, República Dominicana, Uruguai e
Venezuela). Como fator de estrangulamento da efetivida-
de da jurisdição administrativa, o excesso de litígios nos
tribunais latino-americanos é associado a uma indevida
adaptação do sistema judiciário único, típico do direito
administrativo de países vinculados ao common law,
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Revista de Investigações Constitucionais, Curitiba, vol. 4, n. 1, p. 167-205, jan./abr. 2017.
Ricardo Perlingeiro
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SUMÁRIO
1. Introdução; 2. Direito à tutela judicial efetiva; 2.1. Intensidade; 2.1.1. Controle sobre o conteúdo das
decisões administrativas; 2.1.2. Controle jurisdicional de atos de governo; 2.2. Pretensões admissíveis;
2.3. Medidas cautelares; 2.4. Judicialização exacerbada; 3. Desaos referentes ao sistema judiciário; 3.1.
Razões históricas da crise de identidade do sistema judicial; 3.2. Os extremos: deferência administrativa
e controle judicial intenso; 3.3. Credibilidade a partir da especialização dos tribunais; 3.4. Individuais as
demandas repetitivas?; 4. Desaos referentes às autoridades administrativas; 4.1. Funções administrati-
vas primárias; 4.2. Funções administrativas secundárias; 5. Controle difuso de convencionalidade pelas
autoridades administrativas; 6. Certas perspectivas organizacionais para a jurisdição administrativa; 7.
Considerações nais; 8. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O excesso de demandas judiciais na América Latina é extraordinário e pode-
ria deixar um visitante perplexo com a alta produtividade dos seus tribunais judiciais.
A título de exemplo, no Brasil, somente em 2014, cada juiz proferiu em média 1500
sentenças.1
Contudo, em matéria de direito administrativo, na realidade, os juízes vêm sen-
do induzidos a decidir questões análogas, repetidas, o que os têm aproximado da gu-
ra de um gestor de acervos processuais e de uma autoridade meramente executiva,2 e
1 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números: ano base 2013. Brasília: CNJ, 2014. p. 39. Ver tam-
bém: CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em números: ano base 2014. Brasília: CNJ, 2015. Sobre o
excesso de demandas judiciais no contencioso administrativo chileno, ver: CORTE SUPREMA DO CHILE. Acta
176, de 24 de outubro de 2014.
2 Ver: REIS, Wanderlei José dos. Juiz-Gestor: um novo paradigma. Revista On Line do Instituto Brasileiro
de Administração do Sistema Judiciário – IBRAJUS, [S.l.] 2011. Disponível em: < http://www.ibrajus.org.br/
revista/artigo.asp?idArtigo=215>.; SILVEIRA NETO, Antônio. Conitos de massa e gestão dos processos judi-
ciais. In: MORAES, Vânila Cardoso A. de (Coord.). As demandas repetitivas e os grandes litigantes. Brasília:
Enfam, 2016; e GUBERT, Jerson Moacir; BORDASCH, Rosane Wanner Silva. Processamento e Gestão das Ações
improperly integrated certain aspects of the unied judicial
system (generalized courts) typical of administrative law
in common law countries. This situation, according to the
author, could be rectied through strengthening the public
administrative authorities with respect to their dispute-res-
olution and purely executive functions by endowing them
with prerogatives to act independently and impartially, ori-
ented by the principle of legality understood in the sense of
supremacy of fundamental rights, in light of the doctrine of
diuse conventionality control adopted by the Inter-Ameri-
can Court of Human Rights.
Keywords: administrative justice; due process; administra-
tive process; adjudication; Latin America.
em uma cultura jurídica europeia-continental com ori-
gem no civil law. Tal cenário, segundo o autor, pode ser
revertido mediante o fortalecimento do papel das auto-
ridades administrativas quanto a funções jurisdicionais e
a funções meramente executivas, dotando-lhes de prer-
rogativas que assegurem uma atuação (independente e
imparcial) orientada pela supremacia dos direitos funda-
mentais, e com lastro na doutrina do controle difuso de
convencionalidade consagrada pela Corte Interamerica-
na de Direitos Humanos.
Palavras-chave: justiça administrativa; devido processo
legal; processo administrativo; jurisdição; América Latina.
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com o sacrifício da sua vocação jurisdicional para decidir conitos e proteger direitos.3
Isso porque, a maioria dos litígios é articial, ou seja, não decorre de uma pretensão
cujo atendimento esteja ao alcance das autoridades, mas resulta de uma realidade em
que tais autoridades não cumprem seus deveres por falta de infraestrutura suciente
para harmonizar o princípio da legalidade (associado à supremacia dos direitos funda-
mentais) com o princípio administrativo da subordinação hierárquica.4 Ademais, em
muitos casos, são as autoridades que buscam o Judiciário com pretensões executórias
contra particulares, externando o consenso (entre cidadãos, autoridades, Judiciário e
legislador) de que autoridades administrativas não são conáveis para promover a exe-
cução das suas próprias decisões, em agrante contradição com o poder de autoexecu-
toriedade dos atos administrativos.5
Com efeito, observa-se um formidável avanço dos princípios processuais ine-
rentes à tutela judicial efetiva na legislação e jurisprudência latino-americanas. No en-
tanto, por diversas razões, que vão desde a ausência de especialização do Judiciário e
de leis processuais sensíveis à natureza de direito público dos conitos até a ausência
de independência e de capacidade técnica das autoridades administrativas para exer-
cerem o seu papel institucional, o fato é que não se consegue estancar a proliferação de
demandas repetitivas ora rotuladas de “demandas articiais”.6 Segundo Falcão, A bolha
judicial cresce, e a conança na Justiça diminui”.7
Nesse contexto, em busca de soluções para o aperfeiçoamento da jurisdição
administrativa na América Latina, aborda-se o atual estágio de evolução do direito à
proteção judicial sobre as causas de direito administrativo, em paralelo com a orga-
nização judiciária correspondente, sem perder de vista as funções executivas e tam-
bém jurisdicionais a cargo das autoridades administrativas. Para tanto, realizou-se uma
análise crítica e comparada dos sistemas de justiça administrativa dos países latino-a-
mericanos de origem ibérica e sujeitos à Convenção Americana de Direitos Humanos:
Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, El Salvador, Equador, Guatemala,
de Massa. In: MORAES, Vânila Cardoso A. de (Coord.). As demandas repetitivas e os grandes litigantes. Bra-
sília: Enfam, 2016.
3 Ver STRECK, Lenio Luiz. Juiz não é gestor nem gerente. Ele deve julgar. E bem! Consultor Jurídico, São Paulo,
ago. 2013. Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2013-ago-08/senso-incomum-juiz-nao-gestor-nem-
gerente-juiz-julgar-bem>. Acesso em: 31 jan 2017.
4 Ver o tópico 3 deste artigo em diante.
5 Ver PERLINGEIRO, Ricardo. A execução forçada de pretensões pecuniárias e a coerção administrativa de fazer,
suportar ou omitir-se. Revista de Direito Administrativo Contemporâneo, São Paulo, v. 21, ano 3, p. 133-141.
2015.
6 Demandas repetitivas é uma expressão adotada pelo Conselho Nacional de Justiça brasileiro, no projeto
Pesquisa sobre Demandas Repetitivas, e no art. 976 do Código de Processo Civil brasileiro, com o Incidente de
Deandas Repetitivas.
7 FALCÃO, Joaquim. A bolha judicial. Revista Conjuntura Econômica, Rio de Janeiro, v. 60, n. 4, p. 45, abr. 2006.
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