A desalentadora função das punições: revisitando as Teorias da Pena à luz da Psicologia Experimental

AutorRicardo Lins Horta
CargoDoutor em Direito (UnB), Mestre em Neurociências e Graduado em Direito (UFMG), pesqui- sador visitante na École Normale Supérieure, Rue d'Ulm, Paris (2016-2017). Integrante da car- reira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) federal. Ocupou vários cargos de Assessoria e Chefia de Gabinete na Presidência da ...
Páginas265-309
A desalentadora função das punições:
revisitando as teorias da pena à luz da
psicologia experimental1
The disheartening function of punishment: revisiting
the theories of punishment in the light of experimental
psychology
Ricardo Lins Horta *
Conselho Nacional de Justiça, Brasília – DF, Brasil
1. Introdução
Passam-se os anos e, mais uma vez, o Congresso brasileiro aprova e o go-
verno alardeia uma legislação que traz um tratamento ainda mais rigoroso
dos criminosos, valendo-se do apelido “anticrime” para defender sua im-
portância2. Seria de se esperar que o debate dessa lei viesse acompanhado
de dados e evidências que fornecessem bons motivos para se crer que,
desta vez, a nova lei, com as medidas de sempre, será um sucesso. Para-
doxalmente, e de forma nada inédita, não foi o caso. Afinal, não faltam na
* Doutor em Direito (UnB), Mestre em Neurociências e Graduado em Direito (UFMG), pesqui-
sador visitante na École Normale Supérieure, Rue d’Ulm, Paris (2016-2017). Integrante da car-
reira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) federal. Ocupou
vários cargos de Assessoria e Chefia de Gabinete na Presidência da República, no Ministério da
Justiça, e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), especializando-se em gestão de políticas de
justiça e cidadania e em elaboração normativa E-mail: ricardolinshorta@gmail.com.
1 Este artigo resulta de pesquisa doutoral realizada na École Normale Supérieure, em Paris, no
ano acadêmico de 2016-2017, sob a orientação de Nicolas Baumard e Coralie Chevallier, a
quem agradecemos. Somos gratos também às valiosas contribuições de Pedro Pinheiro-Chagas
e Noel Struchiner para esta discussão. Versão anterior deste trabalho foi apresentada no 1° Con-
gresso de Pesquisa em Ciências Criminais (CPCrim), em São Paulo, em 01/07/2017.
2 Trata-se da Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019, que ficou conhecida como “pacote
anticrime”.
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literatura especializada estudos que questionam que o endurecimento das
penas privativas de liberdade seja a melhor política direcionada à redução
da criminalidade, ou que indiquem existir alternativas mais eficazes na
redução da violência na sociedade. Na verdade, há décadas, especialistas,
pesquisadores e acadêmicos vêm advertindo governantes e lideranças po-
líticas que a insistência no encarceramento em massa como solução pre-
ferencial para o problema da criminalidade é um equívoco. Tais apelos,
lamentavelmente, não costumam ser levados a sério3.
Não por acaso, nas últimas três décadas, o aumento da população en-
carcerada foi a tendência no contexto internacional. Para justificá-lo, o ar-
gumento preventivo das penas privativas de liberdade frequentemente foi
invocado: se há crime, mais prisões são a resposta, porque elas previnem
futuros delitos. Ou ainda, se as penas privativas de liberdade não estão
dando conta do recado, é porque não são severas o suficiente isto é,
aumentar ainda mais o tempo que as pessoas passam atrás das grades é a
resposta adequada e desejável.
Para que uma escolha política pareça tão óbvia, e seja tão persistente
no tempo e no espaço, é necessário compreender a lógica argumentativa
subjacente. E essa é uma história bem conhecida: para se mudar um com-
portamento indesejado, deve-se punir, porque a punição funciona. Daí,
segue-se um salto lógico: ora, a forma como nossa sociedade pune é a
aplicação, na gramática do Direito Penal, de penas privativas de liberdade.
Logo, para coibir condutas criminosas, o caminho é criar ou aumentar
penas privativas de liberdade, ou tornar mais rigorosas as suas condições.
Os dados disponíveis corroboram a constatação de que a tônica da po-
lítica criminal tem priorizado a criminalização de novas condutas e o agra-
vamento penas privativas de liberdade4. Para o que importa no presente
3 TONRY, 2019; PRATT, 2007; GARLAND, 2001.
4 É fundamental qualificar essa afirmação, destacando as múltiplas contradições das dinâmicas
da política criminal e do processo político que a configuram. Na visão de Campos (2014), em
estudo a partir da produção legislativa penal entre 1989 e 2006, existe na verdade uma coe-
xistência ou complementaridade entre, de um lado, leis de ampliação de direitos e, de outro,
proposições legislativas que apostam no recrudescimento penal. Por sua vez, Cifali (2015),
focando no período do governo Lula, mostra como um certo “realismo de esquerda” buscou
se contrapor discursivamente a um punitivismo de tonalidade neoconservadora, ao passo que
foram aprovadas leis mais duras sobre drogas, de crimes hediondos, e da criação do Regime
Disciplinar Diferenciado; bem como investiu na criminalização de condutas que afetam grupos
sociais específicos. É o caso da exasperação de punições a crimes ambientais, contra idosos, de
violência doméstica, ou de redução à condição análoga à de escravo.
Ricardo Lins Horta
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trabalho, importa ressaltar que, com certa frequência, as teorias modernas da
pena são invocadas como justificativa para essa expansão do Direito Penal.
Realizando estudo sistemático de proposições legislativas penais que
tramitaram na Câmara dos Deputados entre 1987 e 2006, Maíra Machado
e colegas5 descobriram que, de uma amostra de 100 proposições, em 35
delas os supostos efeitos preventivos e retributivos eram explicitamente
utilizados como argumento para a exasperação da pena.
No mesmo sentido, com base no levantamento das 122 leis que alte-
raram o sistema penal brasileiro entre 1940 e 2009, e examinando todas
as justificativas para a proposição de normas penais na Câmara dos Depu-
tados entre 2007 e 2009, e no Senado entre 2003 e 2009, Luís Gazoto6
constatou uma tendência de agravamento geral do quadro de punitivismo.
As propostas de normas penais mais duras frequentemente traziam justifi-
cativas preventivas, sem dados empíricos que sustentassem suas alegações.
Por sua vez, analisando 37 Propostas de Emenda Constitucional (PEC)
apresentadas entre 1993 e 2010, referentes à questão da redução da maio-
ridade penal, bem como os respectivos discursos parlamentares, Riccar-
do Cappi7 constatou que os discursos punitivistas mais duros se apoiam
numa mescla de argumentos dissuasórios e retributivistas.
O uso rotineiro das teorias tradicionais da pena, sem forte rigor con-
ceitual, se também na prática judiciária. A partir de entrevistas com
magistrados e membros do Ministério Público de todo o país, José Roberto
Xavier8 encontrou discursos nem sempre articulados e coerentes, apoia-
dos em enunciados retributivistas e dissuasórios, que justificavam infligir
sofrimento nos condenados.
Esse quadro, que não tem dado sinais de reversão, apoia-se em gran-
de medida no discurso da dogmática penal, que insiste, em manuais in-
trodutórios ou avançados, numa teoria que tem como um dos seus pres-
supostos a “função preventiva” das penas privativas de liberdade9. Não é
5 MACHADO et al, 2010, p. 35.
6 GAZOTO, 2010.
7 CAPPI, 2014.
8 XAVIER, 2010.
9 No caso brasileiro, as contradições internas ao discurso de aplicação da lei penal parece ser
regra também no caso das medidas de segurança. Em censo abrangente da população de 3.989
indivíduos que viviam nos 26 Estabelecimentos de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do país,
Debora Diniz verificou uma frágil relação entre os diagnósticos psiquiátricos que atestariam a
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