A desigualdade ensejando teoria geral e hermenêutica própria

AutorTaurino Araújo
Ocupação do AutorDoutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires, 2017)
Páginas129-163
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A DESIGUALDADE
ENSEJANDO TEORIA GERAL E
HERMENÊUTICA PRÓPRIA
As leis e as instituições, como os relógios, de vez em quando
precisam ser limpas, revisadas e postas no horário real”.
H W B
(escritor e editor americano)
Tanto nos debates cientícos quanto nos jornalísticos, a autenticidade do
direito é questão recorrente, remetendo a anseios, emoções extremadas, com-
parações, apego uma “estética” de justiça que, na verdade, não esconde o in-
dividualismo das soluções casuísticas ou setoriais a partir de um sistema que
também não encara ou resiste a críticas de um estruturalismo histórico ou
dinâmico. Onde estaria a justiça nas decisões judiciais no sentido de que a re-
petibilidade garantisse, a um só tempo, segurança jurídica e desdiferenciação
em face da causa efetivamente deduzida em juízo?
O direito tem como receptor alguém dotado de pensamento, sentimento
e ação, mas o modelo remete ao distanciamento emocional, dado que nem
todo recorte fático “interessa” ao deslinde da causa, bem como a remissão aos
standards argumentativos e decisórios exibem um fascínio pela retórica, pela
enciclopédia jurídica e pela compartimentalização do direito nos “escaninhos
da desigualdade”, pois já se disse que o processo pode até mesmo sacricar o
direito material e, assim, a sua aplicação como uma solução de emergência se
esgotará em uma sentença, qualquer sentença, desde que seja uma sentença.
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Logo, fora dos ditames de uma hermenêutica da desigualdade vive-se a
ilusão da privacidade da causa e a avareza dos argumentos ou do debate dos
argumentos postos para se chegar apressadamente à síntese especializada, dis-
tante, inacessível que, na verdade, parece não dizer o que pensa e, assim, su-
bestima a complexidade do mundo e das relações, inclusive a relação posta em
juízo. Se não houver o enfrentamento da complexidade, desdiferenciando-a,
com o retorno à estrutura mais primitiva, o foco estará na suposta “autoridade
da decisão” ou procrastinação ao produzir efetividade, preferindo-se a perife-
ria da supercialidade, muitas vezes, apenas amparada na suposta “decisão da
autoridade”.
A priori, é desnecessário identicar o conteúdo da assimetria. Partindo
daquela noção fundamental de que direito é lei e ordem e estabelecendo limites
negativos à ação de todos e de cada um, tem-se a decorrente obrigatorieda-
dade de comportamento — pois nenhuma sociedade poderia subsistir sem
ordem e um mínimo de solidariedade — e a ideia de S R, citado
por M R ()293, quanto a ser o direito a “realização da convivên-
cia ordenada”.
Esse desdobramento é corolário da teoria da instituição na medida que
em a norma jurídica supostamente isonômica não se encontraria sozinha no
mundo, mas ligada a outras normas que compõem o ordenamento jurídico,
afetando às demandas dos poderes sociais (político, econômico e ideológico).
Destarte, sob a perspectiva desta “hermenêutica da desigualdade” também se-
ria inútil o estudo de normas em perspectiva individual em vez de analisadas
em conjunto com instituições que, inclusive, não se fazem sem a observância
de normas e parâmetros para interpretá-las, recorda C S N
(). Logo, o problema é atinente tanto à elaboração quanto à interpretação
legislativa, observando-se o supraprincípio da dignidade da pessoa humana.
Em decorrência, a sistemática das normas é conceito útil tanto para descrever a
realidade jurídica quanto para estabelecer a suposta ordem de conhecimentos
(e a sua aplicabilidade) traduzida na técnica adotada para a composição judi-
ciária ou arbitral do conito de interesse, mantendo-se as propriedades de co-
erência e economia do sistema294 e levando-se em conta tanto o estudo das leis
quanto a solução de problemas concretos. Ela baseia a própria “hermenêutica”
293 M R. Lições preliminare s, op. cit., p. 2.
294 C S N. Introducció n al análisis del derecho. 2. ed . Buenos Aires: Astrea,
20 07,
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para aplicar o direito corretamente, atento à necessidade de que o conceito
da ciência jurídica deva ter função prática, não apenas teórica, mas aplicativa
na solução de problemas concretos dos seres humanos, conforme síntese de
P P ()295.
Tem-se então que o conhecimento jurídico seja duplo quanto ao envolvi-
mento de leis e fatos concretos, mas o objeto da ciência é uno, ou seja, a reali-
dade indistinta sob qualquer perspectiva (social, ética, religiosa, econômica ou
jurídica) é unitária. A nota de observação monocórdia, dizemos, continua sen-
do a desigualdade. Nesse sentido, conclui P, não existirem instru-
mentos válidos em todos os tempos e em todos os lugares para dar conta dessa
realidade [desigual/unitária] e, por isso, esses devem ser construídos pelo ju-
rista considerando-se essa complexidade dialética, pois busca-se a solução do
problema através do conhecimento do Direito em dado momento histórico:
trata-se de um empirismo em face de uma visão totalizadora de mundo.
Para R. L F (), em última análise a tarefa interpretativa
tem função sempre teleológica296, pois
[...] quando se fala em hermenêutica ou interpretação, advirta-se que
elas não se podem restringir tão-somente aos estreitos termos da lei,
pois conhecidas são as suas limitações para bem exprimir o direito, o
que, aliás, acontece com a generalidade das formas de que o direito se
reveste. Desse modo, é ao direito que a lei exprime que se devem ende-
reçar tanto a hermenêutica como a interpretação, num esforço de al-
cançar aquilo que, por vezes, não logra o legislador manifestar com a
necessária clareza e segurança.
No emprego desta ‘hermenêutica da desigualdade, considera-se o fato de
que as normas constituem tanto quaestio certa quanto quaestio dubia. É dizer,
há aspectos que se devem cumprir obrigatoriamente, excluindo alternativa, e
aspectos nos quais o cumprimento acontecerá convidando o receptor da nor-
ma a argumentar quanto ao cabimento, sentido e alcance. Segundo M
H D (), com espeque em T S F J., em toda
norma há um relato (dubium), que é a informação transmitida e o cometimen-
to (certum), que deve ser entendido de modo especíco.O plano da certeza é
plano monológico, plano da submissão à norma (quando o relato é secundário
— não há tanto o que argumentar, pois se está diante uma evidência — e os
295 P P. Normas con stitucionais nas relaç ões privadas, op. cit., p. 2.
296 R. L F . Hermenêutica jurídica, op. cit., p. 41.
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