A despersonalização da personalidade: reflexões sobre corpo eletrônico e o artigo 17 da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais

AutorNelson Rosenvald e José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Páginas445-475
A DESPERSONALIZAÇÃO DA PERSONALIDADE:
REFLEXÕES SOBRE CORPO ELETRÔNICO
E O ARTIGO 17 DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO
DE DADOS PESSOAIS
Nelson Rosenvald
Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-Doutor em Direito
Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-Doutor em Direito Societário na Univer-
sidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic, Oxford University (UK-2016/17).
Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e Mestre em Direito
Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Presidente do
Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil – IBERC. Professor do corpo
permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF.
José Luiz de Moura Faleiros Júnior
Doutorando em Direito Civil pela Universidade de São Paulo – USP/Largo de São
Francisco. Doutorando em Direito, na área de estudo ‘Direito, Tecnologia e Inovação’,
pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Mestre e Bacharel em Direito pela
Universidade Federal de Uberlândia – UFU. Especialista em Direito Digital. Especia-
lista em Direito Civil e Empresarial. Associado do Instituto Avançado de Proteção de
Dados – IAPD. Membro do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil
– IBERC. Advogado e Professor.
Sumário: 1. Introdução – 2. A personalidade e os meios de comunicação como extensão do ho-
mem – 3. Novos contornos para o Artigo 17 da LGPD; 3.1 O corpo eletrônico e a autoatribuição de
falsa identidade; 3.2 Pers, personalidade e perlização – 4. Considerações nais – 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A evolução comunicacional inaugura discussões que desaf‌iam a dogmática
jurídica mais tradicional. E, de fato, institutos clássicos passam a ser reinter-
pretados em função da proeminência das tecnologias digitais emergentes em
sociedade. A personalidade sofre inegáveis inf‌luxos dessa transição e passa a
ser compreendida em função do novo plexo de situações jurídicas existenciais
merecedoras de tutela que, se não são visualizadas facilmente no plano concreto,
passam a se materializar a partir de projeções datif‌icadas na Internet, em verda-
deira transição para o virtual.
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira, particularmente pelo al-
cance protetivo de seu artigo 17, que def‌ine seu escopo de incidência pelo conceito
de titularidade (mais amplo do que o clássico instituto da propriedade), denota exa-
tamente isso: a necessidade de proteção às projeções da personalidade, consubstan-
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ciadas em acervos de dados pessoais, sob as lentes da tríade de direitos fundamentais
que o dispositivo enumera: intimidade, privacidade e liberdade.
Para além disso, a teorização de Rodotà acerca da proteção ao ‘corpo eletrônico’
passa a se coadunar com o que se almeja perquirir no delineamento de um direito
fundamental à proteção de dados pessoais – autônomo e inegavelmente complexo –
para o controle de eventuais casos de vilipêndio informacional em situações como a
autoatribuição de falsa identidade (e a corolária criação de perf‌is falsos) na Internet
e a nefasta perf‌ilização.
Com base nisso, este artigo investigará os contornos peculiares do artigo 17 da
LGPD, conjugando-o aos elementos acima descritos para, ao f‌inal, sintetizar breve
conclusão sobre o que, aqui, se descreve como a ‘despersonalização da personalidade’.
2. A PERSONALIDADE E OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO COMO EXTENSÃO
DO HOMEM
O título deste tópico prontamente remeterá o leitor à clássica obra de Marshall
McLuhan.1 De fato, não há precedentes para o ritmo exponencial da evolução tecnoló-
gica que marcou o Século XX, acelerando processos de transformação social em todas
as áreas, propiciando mudanças no modo de condução da economia, da cultura, das
interações sociais, do trabalho, dos negócios jurídicos, dentre vários outros e, inclusive,
para a própria compreensão que se tem de institutos clássicos da Ciência do Direito.
Para Harari, “[a] ciência moderna não tem dogma. Mas tem um conjunto de mé-
todos de pesquisa em comum, todos baseados em coletar observações empíricas (...)
e reuni-las com a ajuda de ferramentas matemáticas”.2 Rapidamente, pavimentou-se
o caminho para uma nova revolução da indústria, a terceira no curso da história,
sendo marcada pela nêmese da criatividade humana, que propiciou o desenvolvi-
mento de tecnologias (especialmente no ramo das comunicações) capazes de mudar
drasticamente a sociedade já nos primeiros cinquenta anos do século.3
1. McLUHAN, H. Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. Décio Pignatari. São Paulo:
Cultrix, 2007, p. 84. Com efeito: “Os novos meios e tecnologias pelos quais nos ampliamos e prolongamos
constituem vastas cirurgias coletivas levadas a efeito no corpo social com o mais completo desdém pelos anes-
tésicos. Se as intervenções se impõem, a inevitabilidade de contaminar todo o sistema tem de ser levada em
conta. Ao se operar uma sociedade com uma nova tecnologia, a área que sofre a incisão não é a mais afetada.
A área da incisão e do impacto f‌ica entorpecida. O sistema inteiro é que muda. O efeito do rádio é auditivo, o
efeito da fotograf‌ia é visual. Qualquer impacto altera as ratios de todos os sentidos. O que procuramos hoje é
controlar esses deslocamentos das proporções sensoriais da visão social e psíquica (...)”.
2. HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade. Trad. Janaína Marcoantonio. 38. ed.
Porto Alegre: L&PM, 2018, p. 264.
3. David Sax esclarece que: “Digital é a linguagem dos computadores, códigos binários de zeros e uns que,
em combinações inf‌initas, permitem que os hardwares e softwares possam se comunicar e calcular. Se algo
está conectado à Internet, se funciona com o auxílio de um software ou é acessado por um computador, é
digital. O analógico é o yin do yang digital, o dia daquela noite. O analógico não precisa de um computador
para funcionar e quase sempre existe no mundo físico (em oposição ao mundo virtual)”. SAX, David. A
vingança dos analógicos: por que os objetos de verdade ainda são importantes. Trad. Alexandre Matias. Rio
de Janeiro: Anf‌iteatro, 2017, p. 14.
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