Dignidade animal na justificação dos direitos animais

AutorCarlos Frederico Ramos de Jesus
CargoCarlos Frederico Ramos de Jesus, Faculdade do Direito da USP, Doutor e Mestre em Filosofia e Teoria Geral Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FD-USP), onde também se graduou. Professor contratado do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da FD-USP, lecionando a disciplina de Instituições de Direito nos...
Páginas26-51
26 | Revista Brasileira de Direito A nimal, e-IS SN: 2317-4552, Salvador, Volume 17, n. 01, p. 26-51,
Jan/Abr.2022
DIGNIDADE ANIMAL NA JUSTIFICAÇÃO DOS DIREITOS
ANIMAIS
ANIMAL DIGNITY IN THE JUSTIFICATION OF ANIMAL RIGHTS
Recebido: 14.05.2020. Aprovado: 09.05.2022
Carlos Frederico Ramos de Jesus
Professor contratado da Faculdade de Direito da USP (Departamento de Filosofia e Teoria Geral do
Direito), lecionando disciplinas na FD e na FEA-USP. Doutor e mestre em Direito (FD-USP).
Coordenador do Grupo de Estudos de Ética e Direitos Animais (GEDA-FD-USP). Membro do
Oxford Centre for Animal Ethics e do Grupo de Estudos de Ética e Direito dos Animais (Diversitas
FFLCH-USP). Foi membro consultor da Comissão Nacional de Proteção e Defesa dos Animais do
Conselho Federal da OAB (biênio 2019-2021).
EMAIL: carlosfredericor@yahoo.com.br
LATTES: http://lattes.cnpq.br/8117375503138426
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1537-9298
RESUMO: Este artigo aborda a consistência da ideia de dignidade na justificação dos
direitos animais. Por influência de Kant, a dignidade é vista como atributo exclusivo do
ser humano, em virtude de sua racionalidade e autonomia. Este atributo pode ser
estendido aos animais? O trabalho mostrará como quatro filósofos da ética animal
enfrentaram esse problema: Peter Si nger, Tom Regan, Gary Francione e Christine
Korsgaard. Veremos como a senciência, em Singer, embasa a i gual consideração de
interesses entre animais e seres humanos, sem, no entanto, atribuir direitos àqueles.
Regan parte de outro fundamento: os animais d evem ter direitos porque são sujeitos de
uma vida. Francione considera confuso e restritivo o critério utilizado por Regan,
reabilitando a senciência e defendendo que todos os animais sencientes devem ser
invioláveis. A inviolabilidade traduz-se na personalidade: os animais devem ser pessoas
para não serem utilizados como propri edade. Korsgaard concorda que a senci ência é o
critério para que animais devam ser sujeitos de direito, aduzindo que são fins em si
mesmos tão somente pela senciência. Diferentemente dos seres humanos, porém, são
fins em si mesmos em sentido passivo, o que não os impede de terem dignidade, no
sentido kantiano. Ao reinterpretar Kant, Korsgaard articula o vínculo entre senciência e
dignidade, permitindo falar-se em dignidade animal como fundamento, filosoficamente
embasado, dos direitos animais.
PALAVRAS-CHAVE: Dignidade animal; Direitos animais; Senciência.
ABSTRACT: This article approaches the consistency of the idea of dignity in the
justification of animal rights. Because of Kant´s theory, dignity is regarded as solely
applied to human beings, due to their rationality and autonomy. Can dignity be applied
also to other animals? This work will show how four animal ethics philosophers have
tackled this problem: Peter Singer, Tom Regan, Gary Francione and Christine
Korsgaard. We will see how sentience is the basis to equal consideration of interests
between human beings and other animals, without ascribing rights to animals, in
Singer´s theory. Regan´s theory, on the other hand, is grounded on the notion that
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animals should have rights because they are subjects of a life. Francione deems this
criterion unclear and restrictive. He claims that sentience should entail inviolability. In
order to render inviolable all sentient animals and to prevent that they be regarded as
property, Francione argues that sentient animals should be persons. Korsgaard agrees
that sentience is the basis for considering animals as subjects of right and adds that they
are ends in themselves because of sentience. In contrast to humans beings, though,
animals are ends in themselves in a passive sense, which does not prevent that dignity
be attributed to them. Korsgaard´s reinterpretation of Kantian theory allows for the link
between sentience and dignity. Thus, animal dignity can be a philosophically sound
basis for animal rights.
KEYWORDS: Animal dignity; Animal rights; Sentience.
SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Peter Singer: senciência, e não dignidade 3 Tom Regan:
sujeito de uma vida versus dignidade 4 Gary Franci one: senciência implica
personalidade 5 Christine Korsgaard: senciência implica dignidade. O animal como fim
em si mesmo 6 Conclusão 7 Referências.
1. Introdução
Faz sentido falar em dignidade animal? Não é incomum que o debate político e
jurídico sobre os direitos animais faça essa associação: animais devem ter direito a uma
vida digna, a um tratamento digno. Exemplo disso encontra-se na atual versão do projeto
de lei que pretende alterar o status dos animais no País (Projeto de Lei da mara
27/2018). O PLC 27/2018 torna os animais não humanos (doravante, animais) em
sujeitos com direitos despersonificados, com exceção dos que são utilizados na
indústria agropecuária ou em atividades culturais. Mas mesmo estes, que não se tornam
sujeitos, devem ser tratados com dignidade.
1
Todavia, com base em Kant, a dignidade é geralmente vista como atributo
exclusivo da pessoa humana, inclusive no Direito.
2
Em uma primeira leitura, o famoso
1
A redação do art.do PLC 27/2018 é, por ora, a seguinte:
Art.Os animais não humanos possuem natureza jurídica sui generis e são sujeitos com direitos despersonificados,
dos quais devem gozar e, em caso de violação, obter tutela jurisdicional, vedado o seu tratamento como coisa.
Parágrafo único. A tutela jurisdicional referida no caput não se aplica ao uso e à disposição dos animais empregados na
produção agropecuária e na pesqui sa científica nem aos animais que participam de manifestações culturais registradas
como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, resguardada a sua dignidade.
In <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=7987790&ts=1574367803486&disposition=inline>, acesso
em 22 abr 2020. Redação aprovada pelo Se nado Federal em 07 ago 2019, encaminhada à mara dos Deputados,
conforme Diário do Senado Federal de 08 ago 2019, p. 105-122, in
<https://legis.senado.leg.br/diarios/ver/101561?sequencia=122> acesso em 22 abr 2020.
2 Ver SARLET, Ingo Wolfgang. A Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de
1988. 4a ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 34: “É ju stamente no pe nsamento de Kant que a doutrina
jurídica mais expressiva nacional e alienígena ainda hoje parece estar identificando as bases de uma fundamentação
e, de certa forma, de uma conceituação da dignidade humana.

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