Dimens

AutorMachado, Marta Rodriguez de Assis

Introdução (1)

A promoção da igualdade de gênero frequentemente requer instrumentos jurídicos. Porém, esses instrumentos são somente uma peça do quebra-cabeça. As outras peças são instituições funcionais responsáveis por aplicar, arbitrar e administrar regras jurídicas. Enquanto mudanças legislativas ou jurisprudenciais podem promover a igualdade de gênero, instituições funcionais também têm importante papel a desempenhar nesse processo.

Por meio de um estudo de caso, este artigo explora a complexa interação entre a letra da lei e o contexto institucional no qual a lei opera. Em 2001, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) responsabilizou o Brasil por violar os direitos de Maria da Penha Maia Fernandes, uma vítima de violência doméstica, e recomendou que o país adotasse medidas para combater com efetividade a violência contra as mulheres. Em 2006, o governo federal brasileiro respondeu com a promulgação de uma lei com mecanismos para reduzir e prevenir a violência doméstica e familiar contra mulheres, a "Lei Maria da Penha" (Lei 11.340/2006), doravante referida como "a Lei". A Lei adotou uma nova definição legal de violência doméstica com sanções penais mais severas e criou "medidas protetivas" para mulheres em perigo iminente.

A Lei também exigiu uma série de reformas institucionais, incluindo inovações institucionais tais quais varas especializadas, unidades de investigação especializadas e equipes multidisciplinares (com assistentes sociais, psicólogos etc.) para fornecer apoio às vítimas. A Lei também requereu a implementação de delegacias de polícia especializadas e com funcionárias mulheres em todos os estados do Brasil. Diferentes poderes do Estado (por exemplo, o Executivo e o Judiciário) e departamentos dentro do Poder Executivo (serviço de assistência social, sistema público de saúde, polícia) foram incumbidos de implementar essas inovações. A Lei também trouxe medidas de prevenção, exigindo que o Poder Executivo adote "medidas integradas de prevenção", incluindo currículos escolares, campanhas educacionais, treinamento de funcionários e financiamento de pesquisas. Essas políticas deveriam ser implementadas por governos municipais, estaduais e federal, em um trabalho conjunto e com consultoria de atores não-governamentais.

Após detalhar essas mudanças, analisamos as medidas adotadas pelo governo brasileiro para implementar as reformas institucionais, bem como as suas deficiências. Ainda que a Lei tenha sido considerada um dos avanços legislativos mais importantes do mundo na proteção de mulheres, ao lado de iniciativas similares na Mongólia e na Espanha (ONU MULHERES, 2009)., a sua efetividade variou de estado para estado, dependendo da robustez das instituições responsáveis pela implementação das reformas exigidas pela Lei.

Mostramos que os tribunais brasileiros têm sido negligentes no reconhecimento da importância das instituições na Lei. Em 2012, duas ações constitucionais ligadas à Lei foram julgadas pelo Supremo Tribunal Federal. Elas lidavam com diferentes dimensões da igualdade: enquanto uma reconheceu a necessidade de haver legislação exclusiva para mulheres - afirmando igualdade substantiva - a outra falhou em reconhecer que diferentes grupos de mulheres pudessem ser protegidos por diferentes mecanismos legais e instituições e que levar em consideração as diferenças é o modo mais efetivo de promover a igualdade de gênero. Analisamos essas decisões, apontando o alheamento de Ministros e Ministras no que diz respeito à importância do contexto institucional no qual a Lei deveria operar, e como tal contexto poderia auxiliar a Lei a levar em consideração as diferentes vulnerabilidades entre mulheres vítimas de violência. Argumentamos que essa foi uma oportunidade perdida para o Supremo Tribunal Federal atentar às dimensões institucionais e reformas a pela própria Lei.

Concluímos o artigo propondo um caminho alternativo, denominado modularidade. No Brasil - e alhures - mudanças legais e institucionais frequentemente parecem correr como conversas paralelas e não relacionadas, enquanto na realidade as interações entre elas são bastante complexas. A partir do contexto institucional prescrito pela Lei Maria da Penha, a modularidade sugere que em vez de assumir que mudanças legais e institucionais operam de uma forma hierárquica ou independente, deveríamos assumir que a Lei e as instituições podem se complementar ou compensar mutuamente os seus pontos fracos. Por exemplo, em situações nas quais a lei pode ser super ou subinclusiva, as instituições podem desempenhar um papel importante no calibração do processo de aplicação da lei para atingir os objetivos legislativos almejados. Como nosso estudo de caso mostra, ao enxergar somente o lado legal da equação, o Judiciário perdeu a oportunidade de alinhar o funcionamento institucional com os objetivos da lei e de utilizálos para alcançar a igualdade de gênero.

Nossa conclusão principal é a de que acadêmicos da área jurídica e juristas deveriam estar mais atentos às complexas interconexões entre o direito e as instituições para a promoção da igualdade de gênero.

  1. A Lei Maria da Penha e as Suas Dimensões Institucionais

    1.1. A Decisão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH)

    Em 1983, Maria da Penha Maia Fernandes, uma biofarmacêutica brasileira, sofreu uma dupla tentativa de homicídio pelo seu marido que a tornou paraplégica. Em 1998, sem qualquer resposta efetiva do sistema de justiça criminal brasileiro, Maria da Penha - juntamente com duas ONGs, CEJIL e CLADEM - levou uma denúncia à CIDH. Em 2001, quando a Comissão produziu o seu relatório, não havia ainda uma decisão final do caso nos tribunais brasileiros. A CIDH concluiu que o Estado brasileiro havia sido negligente no enfrentamento e na resolução do caso (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001). Em 2002, quando finalmente uma decisão judicial final foi proferida, o marido de Maria da Penha foi condenado a seis anos de reclusão.

    Embora a Comissão não tenha tecnicamente encontrado uma violação de proteção da igualdade (Art. 24 da Convenção Americana sobre os Direitos Humanos - CADH), ela encontrou violações relacionadas ao direito a um julgamento justo (Art. 8 da CADH) e à proteção judicial (Art. 25 da CADH). Ela também considerou que o Brasil estava violando o Artigo 7 da Convenção de Belém do Pará referente à violência contra mulheres. A CIDH explica que essas violações formam um padrão de discriminação contra a Sra. Penha Maia Fernandes e outras mulheres no Brasil. O caso evidenciou a ineficiência do Estado brasileiro em prevenir e combater a violência contra mulheres, especialmente a violência doméstica. A CIDH considerou que isso gerava desigualdade, dado que é trinta vezes mais provável que uma mulher seja vítima de violência doméstica em comparação com um homem.

    Cumpre ressaltar que, embora tenha-se reconhecido que há muitas causas dessa desigualdade, a Comissão focou-se em como o direito foi aplicado desigualmente pelas instituições brasileiras. De acordo com a Comissão, o problema da igualdade se manifestava não no modo pelo qual o direito tratava as mulheres, mas em como a polícia brasileira, o Judiciário e outros serviços de apoio - por exemplo, a perícia forense das vítimas - lidavam com esses casos. Mais especificamente, a Comissão mencionou que policiais sem treinamento são frequentemente não receptivos a mulheres que denunciam violência, o que por sua vez desencorajara as mulheres a denunciar casos; mesmo em estados com delegacias especializadas - conhecidas como Delegacias da Mulher -, somente uma fração das denúncias realizadas são de fato investigadas; e o Judiciário brasileiro, por sua vez, ainda interpreta as leis existentes de maneiras a impor o ônus da prova às mulheres, revitimizando-as. Devido à falta de instituições funcionais e efetivas, apenas 2% dos casos de violência contra mulheres denunciados no Brasil terminaram em punições (CIDH, 2001).

    Em seu relatório, a CIDH recomendou ao Estado brasileiro a "prosseguir e intensificar o processo de reforma que evite a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra mulheres no Brasil" (COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2001). Mais especificamente, a Comissão recomendou:

    1. Fornecer treinamento especializado de sensibilização para funcionários públicos e policiais, voltado à compreensão da importância de combater a violência doméstica;

    2. Simplificar os procedimentos judiciais para reduzir a duração do processo, sem impactos negativos nos direitos, garantias e devido processo legal;

    3. Estabelecer mecanismos alternativos de resolução de conflitos para oferecer soluções rápidas e efetivas para disputas familiares;

    4. Multiplicar o número de delegacias especiais para proteger os direitos de mulheres, bem como fornecer os recursos necessários para seu efetivo funcionamento;

    5. Incluir discussões sobre direitos das mulheres, como definidas na Convenção de Belém do Pará, no currículo escolar.

    A próxima seção discute as consequências do relatório. Embora houvesse no Brasil uma forte e longeva mobilização da sociedade civil pelo fim da violência contra as mulheres, não houve reformas significativas até o relatório da CIDH (BARSTED, 2011). Nesse contexto, o recurso à CIDH pode ser interpretado como uma estratégia de contornar os obstáculos domésticos e criar pressão externa (isto é, internacional) para produzir domesticamente um "efeito bumerangue" (KECK; SIKKINK, 1998). A Lei é um exemplo bem-sucedido dessa estratégia (PANDJIARJIAN, 2008).

    1.2 O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres

    Logo após a publicação do relatório da CIDH, o Brasil iniciou um longo processo de deliberação envolvendo o governo e a sociedade civil em torno da urgência de combater a violência doméstica e de gênero. Em 2002, grupos da sociedade civil organizaram a Conferência de Mulheres Brasileiras. Em 2003, o governo federal criou a Secretaria Nacional de...

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