Direito à Soberania Alimentar no Capitalismo Periférico/Right to Food Sovereignty in Peripheral Capitalism.

AutorGuerra, Clarissa de Souza

Introdução

Para além do direito humano à alimentação adequada, mas com ele conectado, o conceito de Soberania Alimentar possui múltiplas dimensões, entre elas, a dimensão jurídico-ambiental, na medida em que trata do direito dos povos a escolher a forma como organizarão os meios de acesso, produção e consumo de alimentos sem degradar o ambiente.

No entanto, o modo de produção capitalista oferece uma série de limites e impedimentos à garantia de tal direito. A questão é saber, considerando a realidade concreta desse modo de produção, que limites econômicos, (geo)políticos e jurídicos podem ser apontados no que tange à garantia da soberania alimentar--como um direito --em um país de capitalismo periférico, como é o caso do Brasil.

Nesses termos, tem-se como objetivos, a partir de uma abordagem crítica jurídica, analisar a soberania alimentar, enquanto um conceito que evolui e um direito que exige políticas públicas, para compreender a gênese do conceito e suas dimensões ambiental e jurídica e apontar alguns dos limites econômicos, geopolíticos e jurídicos à soberania alimentar, a partir da realidade concreta das relações capitalistas em sua atual fase, especialmente, no Brasil, tendo-se como marco temporal inicial o ano de 1996.

Na tentativa de ensaiar uma resposta à problemática apresentada, utilizou-se da pesquisa bibliográfica adotando-se como matriz teórico-metodológica o materialismo histórico e uma abordagem dialética do tema com o propósito de "desvendar, sob o mundo da aparência, o mundo real, visando à destruição da pseudoconcreticidade, para que se chegue à concreticidade" (KOSIK, 2002), explicitando as contradições entre o que se entende por soberania alimentar, no campo jurídico e político, e o modo de produção capitalista--especialmente, em países periféricos como é o caso do Brasil

Em conexão com a problemática apresentada e com o caminho metodológico escolhido, optou-se por uma exposição dividida em duas seções construídos com base nas referências-chave abaixo citadas:

A primeira seção trata da soberania alimentar, enquanto um conceito que evolui e um direito que exige políticas públicas, a partir das contribuições de Josué de Castro e João Pedro Stédile e, ainda, de documentos da Via Campesina Internacional. Para abordagem a respeito da soberania alimentar no Brasil, utiliza-se documentos governamentais e legislação referentes às políticas públicas e instrumentos normativos que são expostos. A segunda seção, ao referir sobre os limites econômicos, geopolíticos e jurídicos à soberania alimentar, parte da realidade concreta das relações capitalistas, tendo-se como principal referência Ladislau Dowbor. Também são apontados os principais retrocessos à soberania alimentar, no Brasil. Para tratar, especificamente, sobre os limites jurídicos à garantia da soberania alimentar, busca-se na crítica ao direito, realizada por E. Pachukanis e nas contribuições de Alysson L. Mascaro e Ricardo Prestes Pazello, os fundamentos para compreender a essência/aparência do direito e seus efeitos na realidade concreta.

Por fim, a título de conclusão, elabora-se uma síntese do que foi analisado, trazendo-se algumas considerações baseadas no contexto atual e algumas perspectivas em relação ao futuro relativas ao tema abordado.

1 Soberania Alimentar: um conceito que evolui e um direito que exige políticas públicas

É importante compreender o histórico que antecede a formalização do conceito de Soberania Alimentar, no ano de 1996, em Conferência da Via Campesina Internacional e do Movimento dos Pequenos Agricultores, considerando as circunstâncias e estratégias que conduziram à criação deste conceito por estes movimentos sociais. Para isso, partese da realidade concreta do Brasil, enquanto país periférico, para, em seguida, verificar como a força do movimento por soberania alimentar acaba se refletindo no país, no campo jurídico e das políticas públicas.

Soberania Alimentar: a história de um conceito multidimensional e seus desdobramentos na realidade concreta

A Organização das Nações Unidas (ONU) considera, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o direito humano à alimentação adequada (DHAA) como um dever dos Estados. Apesar disso, Jean Ziegler (2012) assevera que "Dentre todos os direitos humanos, o direito à alimentação é, seguramente, o mais constante e mais massivamente violado em nosso planeta" (2012, p. 19).

Nesse sentido, em meados do século XX, o estudioso brasileiro Josué de Castro, autor de "Geografia da Fome" (1946), já denunciava o silêncio em torno dessa temática no Estado brasileiro, ao estabelecer relações entre a questão alimentar e nutricional e os processos de desenvolvimento nacional. A Josué de Castro, atribui-se o reconhecimento da fome como um problema social, isto é, uma condição estrutural das relações de poder que se estabelecem na geopolítica global.

É possível afirmar que as conclusões de Josué de Castro ratificam a condição de subdesenvolvimento, fruto da expansão do capitalismo no período colonial (1), que condenou os países periféricos às fragilidades do abastecimento alimentar de sua população. A consolidação da agricultura capitalista, como modelo produtivo nacional, em atendimento à lógica do mercado, acentuou a desigualdade nas áreas rural e urbana e, consequentemente, a luta pelo acesso à terra.

Assim, no final da década de 1940 e início da década de 1960, dá-se o processo de organização, reivindicação e luta no campo brasileiro, com a formação do movimento "Ligas Camponesas", na região nordeste do país e a nacionalização da luta pela reforma agrária (OLIVEIRA, 2007, p. 104, 106, 109), que, ainda hoje, se apresenta como uma demanda atual.

Nesse cenário de luta, houve a juridicização do acesso à terra, com a assinatura do Estatuto da Terra, em 1964; na década de 1970, o Decreto-Lei n. 1.110 de 09 de julho de 1970 criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA); e, nos anos 1980, foi criado o Plano Nacional da Reforma Agrária (OLIVEIRA, 2007, p. 121, 122). Apesar disso, a organização latifundiária impediu a consecução de reformas no campo, mantendo-se a estrutura fundiária altamente concentrada e a má distribuição de terras entre a população (SANTOS, 2016, p. 19).

Pode-se afirmar, assim, que a história do capital é atravessada pela luta de classes e, no Brasil, a concentração da propriedade privada da terra é parte constitutiva do capitalismo que se desenvolveu no país. Por isso, os conflitos no meio rural ocorrem sob duas frentes: "uma para entrar na terra, para se tornarem camponeses proprietários, e em outra frente, lutam para permanecerem na terra como produtores de alimentos fundamentais à sociedade brasileira". A luta camponesa é, nesse sentido, constante (OLIVEIRA, 2007, p. 132-134).

Nesses termos, busca-se o direito de acessar a terra, para um novo formato de produção de alimentos, que compreenda a alimentação como um direito e não como uma possibilidade de mercado. Para tanto, a soberania alimentar é contrária ao sistema do alimento-mercadoria.

Conceitualmente formalizada no ano de 1996, a Soberania Alimentar já havia sido objeto de discussões na década de 1980, em que movimentos do campo e governos da América Central reivindicavam melhores condições no mercado de alimentos (COCA, 2016, p. 22).

Nesse sentido, a gênese do conceito de Soberania Alimentar encontra respaldo no âmago de movimentos sociais do campo, tanto no meio internacional, através daVia Campesina Internacional, quanto no âmbito nacional, com oMovimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), sendo este um de seus diferenciais.

Cabe mencionar que os movimentos sociais rurais percebem a importância de se repensar os sistemas alimentares, a partir da construção de alternativas agroecológicas (ALTIERI, 2010, p. 29). Por isso, dedicar-se-á algumas linhas para tratar sobre os movimentos que dão voz à soberania alimentar.

A Via Campesina, formalizada em 1993, durante a I Conferência Internacional do movimento, tem como escopo a promoção da soberania alimentar como eixo central para um novo modelo de sociedade (COCA, 2016, p. 85). Por isso, é concebida como uma "articulação popular e internacional que se contrapõe ao atual modelo de produção na agricultura em nível mundial" (ALEM; OLIVEIRA; G. G.; OLIVEIRA, J.; IMBIRUSSÚ, 2015, p. 20).

Pode-se afirmar que a Via Campesina é uma das principais organizações em defesa dos interesses do campesinato em escala global, pautada na aliança com outros movimentos sociais, como o dos pescadores, pastores, mulheres do campo e da cidade, consumidores, ambientalistas, bem como com governos progressistas preocupados com a construção coletiva da soberania alimentar (STÉDILE; CARVALHO, 2010, p. 11). Trata-se de uma rede articulada das diversas lutas dos povos do campo que conta, atualmente, com cerca de cento e oitenta e duas organizações camponesas, distribuídas por oitenta e um países de todos os continentes (VIA CAMPESINA, 2020).

No Brasil, alinhadas aos fundamentos da Via Campesina, o MPA e o MST se constituem como os movimentos nacionais em defesa dos interesses dos camponeses e dos pequenos produtores rurais, no sentido de lhes garantir condições de vida adequadas às suas realidades.

A construção do MPA ocorreu entre os anos 1995 e 1996, devido à insatisfação dos agricultores, em especial, no Rio Grande do Sul, quanto ao não atendimento de seus anseios, pelo sindicato rural. As famílias de agricultores organizaram, assim, acampamentos, denominados "acampamentos da seca", que tinham como objeto inicial a conquista de crédito emergencial. Entretanto, com o tempo, percebeu-se que a crise superava as questões financeiras, tornando-se uma luta coletiva de cunho ideológico (DUTRA JÚNIOR; DUTRA, 2008, p. 203).

O camponês, para o MPA, é o indivíduo que, embora inserido no sistema de mercadorias, não se vê como capitalista, escapando às simples definições, pois "[...] apresenta um modo de vida que o diferencia...

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