O Direito Internacional nas constituições brasileiras: evolução e desafios do treaty-making power / International Law in the brazilian constitutional texts: evolution and challenges of the treaty-making power

AutorPaula Wojcikiewicz Almeida
CargoDoutora em direito pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Doutora em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora adjunta de Direito Internacional e Europeu da FGV Direito Rio. Coordenadora da Cátedra Jean Monnet da União Européia (Programa de Direito da União Européia FGV Direito Rio). Pesquisadora do Centro de ...
Páginas359-392
Revista de Direito da Cidade vol. 10, nº 1. ISSN 2317-7721
DOI: 10.12957/rdc.2018.32113
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Revista de Direito da Cidade, vol. 10, nº 1. ISSN 2317-7721 pp. 359-392 359
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O processo brasileiro de conclusão de tratados foi inicialmente caracterizado por uma
competência partilhada, conforme previsto na Constituição belga de 1831, que serviu de
modelo para o Brasil e outros países. As disposições do texto constitucional brasileiro de 1988
que regem o poder de concluir tratados contrastam com a lógica das constituições anteriores,
baseadas na fórmula franco-belga de divisão de poderes. O texto atual confere uma ampla
margem de manobra ao poder executivo, sendo este último capaz de decidir quais tratados
podem causar gravames ao patrimônio nacional e, portanto, exigir aprovação legislativa. As
regras constitucionais não só determinam a competência dos poderes executivo e legislativo no
processo de elaboração de tratados, mas também indicam os procedimentos a serem aplicados
para a incorporação do direito internacional no Brasil. O processo de incorporação é marcado
por um desequilíbrio entre os poderes executivo e legislativo, típico de um país sob regime
presidencial. O poder executivo domina todo o processo de conclusão de atos internacionais,
sofrendo pouca interferência do legislador. Se a atuação do poder executivo é discricionária e
não arbitrária, esta não é imune às críticas. Requisitos históricos, como a promulgação de
tratados, não previstos expressamente no texto constitucional, resultam em uma incerteza
jurídica que pode comprometer os comprom issos assumidos pelo Brasil na esfera internacional.
-Processo de Conclusão de Tratados; Incorporação; Brasil; Tratados
Internacionais; Constituição Brasileira
The Brazilian treaty-making procedure was initially characterized by shared competence, as
provided for in the Belgian Constitution of 1831, which served as a model for Brazil and other
countries. The current Brazilian constitutional text dates back from 1988. Its rules governing the
power to conclude treaties contrast with the logic of previous constitutions, which were based
on the Franco-Belgian formula of division of powers. The current text confers a large margin of
maneuver to the executive power, the latter being able to decide which treaties may
compromise the budget of the state and, therefore require legislative approval. Constituti onal
1 Doutora em direito pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne. Doutora em direito pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora adjunta de Direito Internacional e Europeu da FGV Direito
Rio. Coordenadora da Cátedra Jean Monnet da União Européia (Programa de Direito da União Europé ia
FGV Direito Rio). Pesquisadora do Centro de Justiça e Sociedade (CJUS) da FGV Direito Rio. Pesquisadora
associada do Institut de Recherche en Droit International et Européen de la Sorbonne (IREDIES).
Pesquisadora visitante do Max Planck Institute for Comparative Public Law and International Law (2014) e
da University of Oxford, Faculty of Law (2014). Pesquisadora do Centre d'études et de recherche en droit
international et relations internationales de l'Académie de droit international de La Haye (2010). E-mail:
paula.almeida@fgv.br
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rules not only determine the competence of executive and legislative powers in the process of
treaty-making, but also indicate the procedures to be applied for the incorporation of
international law in Brazil. The incorporation process is marked by an imbalance between the
executive and legislative powers, typical of a country under a presidential regime. The executive
power dominates the whole process with a view to concluding international acts, suffering little
interference from the legislature. If the executive’s power on the matter is discretionary bu t not
arbitrary, it is not immune from criticism. Historical requirements such as the promulgation of
treaties, not provided for in the constitutional text, results in a legal uncertainty which may
compromise the commitments undertaken by Br azil in the international arena.
-Treaty-Making Power; Incorporation; Brazil; International Treaties; Legislative
Power; Brazilian Constitution.
Até o final do século XVIII, a conclusão dos tratados foi sempre sujeita à vontade dos
monarcas2. Essa vontade era absoluta. A validade interna de um tratado não se questionava,
pois o soberano sempre poderia impor a sua primazia3. A política externa, portanto, era apenas
uma questão a ser tratada entre príncipes, excluindo qualquer intervenção dos governados que
só puderam se envolver com política externa após a revolução francesa. Com efeito, a
Revolução produziu uma mudança substancial no direito constitucional na época, introduzindo
a técnica democrática em matéria de conclusão de compromissos internacionais4. O
Parlamento francês começou a desempenhar um papel de liderança na conclusão dos tratados
e na condução dos assuntos externos, em conformidade com o que dispõe a primeira
Constituição escrita de 1791. Como representante da nação, o corpo legislativo, eleito pelo
povo, era competente para ratificar os tratados de paz, de aliança e comércio5. A liberdade do
rei para decretar e assinar tratados internacionais com potências estrangeiras estava, portanto,
sujeita à ratificação pela Assembleia Legislativa6. A maioria dos textos constitucionais
2 MEDEIROS (A. P. C.), O Poder Legislativo e os Tratados Internacionais, Instituto dos Advogados do Rio
Grande do Sul/L&PM, Porto Alegre, 1983, p. 24; ARAÚJO (J. H. P.), A processualística dos atos
internacionais, Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro, 1958, p. 147.
3 MIRKINE-GUETZÉVITCH (B.), “Droit international et droit constitutionnel”, R.C.A.D.I., 1931-IV, pp. 357-
358.
4 VISSCHER (P. de), “Les tendances internationales des constitutions modernes”, R.C.A.D.I., 1952-I, p. 535.
5 Esta fórmula permitiu distinguir os tratados que envolvem a intervenção das Câmaras e aqueles que são
concluidos apenas pelo Presidente da República, apesar das várias soluções que prevaleceram ao longo
da turbulenta história constitucional francesa do século XIX (MESTRE (A.), “Les traités et le droit interne”,
R.C.A.D.I., 1931-IV, pp. 240-241).
6 V. título III, capítulo IV, seção III, artigo 3 da Constituição de 1791.
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democráticos deram ao legislador uma participação significativa na conclusão dos atos
internacionais7.
A evolução constitucional da Europa e a participação do poder legislativo e executivo na
conclusão dos tratados internacionais foi marcada pela adoção da Constituição Belga de 1831.
Trata-se de um texto constitucional inovador, que privilegiou a participação legislativa. A
fórmula franco-belga relativa à celebração de tratados internacionais prevê a existência de dois
tipos de tratados: os tratados celebrados diretamente pelo executivo; e os tratados submetidos
à uma aprovação prévia das Câmaras, como aqueles relativos ao comércio, às finanças do
estado e à legislação em vigor 8. De acordo com o jurista Paul de Visscher, esta evolução dos
compromissos internacionais é um fato constitucional porque na maioria dos Estados as
constituições submetem à aprovação parlamentar categorias cada vez mais numerosas de
tratados internacionais9. Parece, portanto, que a divisão de poderes entre o executivo e o
legislativo constitui uma regra bem estabelecida na maioria dos Estados 10, independentemente
do sistema presidencial.
A fórmula franco-belga prescreve a intervenção do Parlamento seja para todos os
tratados internacionais, seja para alguns deles considerados particularmente importantes. A
França e a Inglaterra aplicam a segunda solução, que provou ser a mais aceita em geral11. Com
efeito, o artigo 8º da lei constitucional francesa de 1875 consagrava a partilha das competências
entre o executivo e o legislativo, associando este último à aprovação de determinados tratados
claramente definidos pela Constituição. A exigência de ratificação dos tratados mais
importantes foi mantida também no artigo 27 da Constituição de 27 de outubro de 1946, que
aumentou o envolvimento do Parlamento no processo de ratificação de tratados,
acrescentando outros tratados à lista daqueles submetidos à intervenção legislativa12. O papel
do poder executivo foi reforçado por ocasião da Constituição francesa de 1958 e foi
acompanhado de uma limitação do aval parlamentar para um determinado número de
7 ARAÚJO (J. H. P.), op. cit., p. 148.
8 V. artigo 68 da Constituição Belga de 7 de fevereiro de 1831.
9 VISSCHER (P. de), op. cit., p. 535. V. também VISSCHER (P. de), “L'adaptation de la Constitution belge aux
réalités internationales”, Atos do colóquio de 6 e 7 de maio de 1965, Editions de l'institut de sociologie,
Bruxelas, 135 p.
10 ROUSSEAU (C.), Droit international public, Dalloz, 11ª ed., Paris, 1987, p. 36.
11 VEDEL (G.) Manuel élémentaire de droit constitutionnel, Librairie Du Recueil Sirey, Paris, p. 527 ;
CARREAU (D.) Droit international, Pedone, 9ª ed., Paris, 2007, p. 125; DUPUY (P.-M.) Droit international
public, Dalloz, 8ª ed., Paris, 2006, p. 423;
12 Segundo VEDEL (G.), esta classificação intervém em função do objeto dos tratados, sendo igualmente
aplicável aos que modificam as leis internas francesas, op. cit., p. 527.

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