O direito privado como justiça corretiva

AutorRafael De Freitas Valle Dresch
Páginas43-109
43
CAPÍTULO 1
O DIREITO PRIVADO COMO JUSTIÇA
CORRETIVA
“Se o homem falhar em conciliar
a justiça e a liberdade, então falha em tudo.”
Cadernos
Camus, Albert
O debate sobre o direito privado é dividido na atualidade,
principalmente, por duas grandes correntes, como dito acima. Uma parte
dos analistas entede que o direito privado tem uma racionalidade centrada
na forma decorrente do sentido de justiça comutativa
(corretiva/sinalagmática) desenvolvida na tradição aristotélica. Os
institutos de direito privado são percebidos com base na busca de uma
forma de relação que se desenvolve em termos de garantia de uma
igualdade aritmética entre os participantes. Como ensina Gordley34, o
direito privado teria sido moldado, desde seus primórdios de sua tradição,
segundo o sentido de justiça comutativa através da construção de soluções
jurídicas pelos jurisconsultos romanos, principalmente, no período
clássico do direito romano35. O direito privado, portanto, desde os
34 Vide a análise de Gordley em GORDLEY, op. cit., p. 14.
35 Importante d esde já referir a influência do estoicismo, contraria mente à tese de
Villey, para o qual a influência estoica é secundária. Nussbaum demonstra a
importância do estoicismo na tradição como escola do pensamento que
compreendeu, primeiramente, a possibilidade de uma construção político-jurídica
baseada numa igual dignidade de todos os seres humanos: “Stoicism remedied this
deficiency. The most influential school of ethical and political thou ght in Greco-
44
jurisconsultos, tem a forma de justiça comutativa como central e seus
institutos são racionalmente compreendidos nos termos desse sentido de
justiça.
1.1. AS ORIGENS DA COMUTATIVIDADE NO DIREITO
PRIVADO
A forma de justiça comutativa que surgiu entre os romanos como
um princípio que fundamentava uma diversidade de soluções jurídicas
para problemas práticos36, segundo a visão de Gordley, teria sido objeto de
uma estruturação na modernidade por jusnaturalistas que acabaram por
sistematizar essa série de soluções jurídicas, as quais, durante a
Roman a ntiquity, a nd perha ps the most influential philosophical school a t any
time in the Western tr adition, Stoicism exercised such a widespread sway,
particula rly in Rome, that every educated person, and many who were not
educated, were at some level guided by it.106 Roman Stoic authors such as Cicero,
Seneca, Epictetus, a nd Marcus Aurelius were more influential in the seventeenth
and eighteenth centur ies than Plato or even Aristotle.
The Stoics taught that ever y human being, just by virtue of being human, has
dignity and is worthy of reveren ce. The human ability to perceive ethical
distinctions and to make ethical judgments is h eld to be the ‘god within’ and is
worthy of boundless reverence. Ethical capa city is found in all human beings, male
and female, slave and free, high-born a nd low-born, rich a nd poor. Wherever this
basic human capa city is found, then, it must be respected, and tha t respect should
be equal, treatin g the a rtificial distinctions created by society as trivial and
insignificant. This idea of equal r espect for humanity lies at the hear t of what the
Stoics called ‘natural law’, the moral law that should provide guidance even when
people are outside the r ealm of positive law”. (NUSSBAUM, Martha C. The
Supreme Court 2006 Term Foreword: Constitutions and Capabilities:
“Perception” Against Lofty Formalism. Harvar d Law Review, v. 121:4, [s.d.]. p.
37-38).
36 Importante a referência à análise de T heodor Viehweg sobre o papel central da
razão prática no pensamento jurídico. Nesse sentido, Viehweg destaca como o
Direito Romano teve suas origens centradas no pensamento problemático e não no
pensamento sistemático. Vide VIEHWEG, Theodor. Tópica e J urisprudência:
Uma contribuiçã o à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. Trad.
Kelly Susane Alflen da Silva, Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Ed. 2008.
45
Antiguidade e a Idade Média eram compreendidas de forma assistemática.
Tal sistematização, por ter ocorrido no momento de preponderância de
uma tradição liberal, acabou por se construir sobre pilares de primazia de
uma racionalidade formalista.
Contudo, antes de adentrar no estudo das teorias que abordam a
justiça comutativa como um conceito central na análise de direito privado,
convém, como já realizado em obra anterior37, definir a justiça comutativa.
A justiça comutativa, como justiça particular que é (dikaion), está centrada
na busca de igualdade entre participantes de transações voluntárias e
involuntárias. A igualdade nas transações almejada, segundo a tradição
Aristotélica, é uma igualdade aritmética. Assim, se há uma medida
equivalente a dois para um participante da transação de um lado, deve-se
ter a mesma medida equivalente a dois para o outro participante. A
igualdade aritmética buscada é uma igualdade absoluta, o que determina
que as qualidades dos participantes da transação sejam desconsideradas.
A justiça comutativa se estabelece nas transações voluntárias
(negócios) e involuntárias (ilícitos), quando algum participante toma mais
do que lhe cabe dos bens. A necessidade de correção ocorre, pois há
sempre uma ação injusta para com o outro, caracterizada por um ganho
indevido de uma parte, que gera uma consequente perda indevida da outra
parte da transação. Aristóteles sempre compreende o sentido da justiça
partindo da análise do injusto, nesse caso, o injusto caracteriza-se por
tomar mais do que lhe cabe nas transações voluntárias e involuntárias.
Diante da fixação do injusto, de uma ação que prejudica o outro
numa relação entre seres humanos, a justiça comutativa define-se pela
necessária correção entre os membros da comunidade, através da busca do
reequilíbrio nas relações privadas, voluntárias (negócios) e involuntárias
(ilícitos civis).
37 A análise dos pontos 1.1 e 1.2 aqui desenvolvida é fruto de amplas reformulações
e revisões dos pontos 1.1 .3 e 2.1.3 da obra de DRESCH, Rafael de Freitas Valle.
Funda mentos da responsa bilidade civil pelo fato do pr oduto e do ser viço: um
debate jurídico-filosófico entre o formalismo e o funcionalismo no Direito
Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT