O direito privado na divisão complexa da justiça

AutorRafael De Freitas Valle Dresch
Páginas177-264
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CAPÍTULO 3
O DIREITO PRIVADO NA DIVISÃO COMPLEXA DA
JUSTIÇA
Quando alguém compreende que é contrário
a sua dignidade de homem obedecer a leis injustas,
nenhuma tirania pode escravizá-lo.
Gandhi, Mohandas
Na introdução deste estudo, foi apresentada uma hipótese para o
problema da dicotomia entre fundamentos de racionalidade centrados na
justiça comutativa e na justiça distributiva. Como foi possível observar nos
capítulos anteriores, enquanto uma visão construída pela Escola do Direito
Natural de Grócio, Pufendorf, dentre outros, desenvolvida, sobretudo, pela
Escola Histórica do Direito de Savigny e Puchta e retomada por formalistas
contemporâneos como Weinrib, acabou por sistematizar o direito privado
e suas normas pensadas fundamentalmente pelos romanos, nos termos de
uma racionalidade formalista, basicamente de justiça comutativa, em
meados do século XIX, outra visão surge na tradição de direito privado,
que vai se caracterizar por uma racionalidade não mais formalista e
comutativa, mas uma racionalidade funcional direcionada a objetivos
sociais, principalmente coletivos, possíveis através de arranjos
distributivos. O funcionalismo apresentou diversas vertentes, também aqui
exploradas: o Direito Social, a Análise Econômica do Direito e o
Liberalismo-Igualitarista, que desenvolveram uma compreensão da
racionalidade do direito privado nos termos da justiça distributiva, seja
concentrando o direito privado na redução das desigualdades sociais, na
maximização da riqueza ou na maximização de igualdade de direitos e
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oportunidades, o direito privado passou a ser entendido como uma
ferramenta para obtenção de fins coletivos, muitas vezes, conflitantes e
cerceadores dos direitos individuais. Diante da retomada do formalismo,
em termos contemporâneos, com pensadores como Ernest Weinrib que,
na realidade, objetiva um resgate das características que seriam especiais
do direito privado -, o debate se acirrou.
Hoje, o estudo do direito privado se encontra nessa condição de
crise de racionalidade, de identidade, de especificidade, que desafia todos
aqueles que entendem que o direito privado se constitui num ramo
destacado do direito, detentor de uma racionalidade própria que lhe define
e lhe relaciona complementarmente com o direito público. A crise pode ser
considerada tão relevante que alguns privatistas abandonaram a tentativa
de encontrar uma compreensão total, um mapa da racionalidade do direito
privado, concluindo que o direito privado pode ser entendido a partir de
diversas racionalidades e princípios não necessariamente passíveis de uma
compreensão totalizante. Nesse sentido, cabe referir a compreensão de
Waddams sobre essa complexidade de racionalidades que permeia o
direito privado na atualidade.310
Diante da complexidade de esquemas de racionalidade311 que se
apresentam como aparentemente incomensuráveis entre si, abrem-se duas
310 “Two consequences follo w on these complexities: it has not been possible to
explain Anglo-American priv ate law in terms of any single concept, nor has any
map, scheme, or diagram proved satisfactory in which the concepts are separated
from each other, as on a two-d imensional plane. The idea of mapping cannot be
entirely discarded, and it owes its attractio n partly to the fact that it is understood
in many different ways, some of which are essential to the organization of thought.
But in so far as it implies a separation of legal concepts from each other, or the
assignment of each legal issue to one concept alone, it is apt to distort an
understanding of the past, and consequently also of the present.” W ADDAMS,
Stephen. Dimensions of Private Law: Categories and Concepts in Anglo-American
Legal Reasoning. New York: Cambridge University Press, 2003. p. 226.
311 Sobre a visão pluridimensional de Waddams cabe cons ultar as seguinte s revisões
críticas: SAMUEL, Geoffrey. Can the Common Law be Ma pped? The University
of Toronto Law Jour nal, v. 55, n. 2, Spring, p. 271-297, 2005.; e BEEVER, Allan;
RICKETT, Charles. Interpretive Legal Theory and the Academic Lawyer. The
Modern Law Review, v. 68, n. 2, p. 320-337, Mar., 2005.
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possibilidades. A primeira é a de tomar essa complexidade de forma
assistemática, como propõe Waddams312, aceitando que vários princípios
e dimensões, aparentemente aleatórias, fornecem as bases de racionalidade
jurídica313 ou, de alguma forma, é necessária a compreensão de uma ordem
para além das teorias rivais em conflito. A hipótese, aqui defendida, para
a superação dessa complexidade refletida, sobretudo, na inviabilidade de
compatibilização das teorias formalistas, funcionalistas sociais e
funcionalistas econômicas acima expostas, está centrada em um elemento
compartilhado por todas elas: a teoria da justiça. O problema central
identificado é justamente decorrente da perda da relação do direito com a
teoria da justiça ocorrido a partir da Escola do Direito Natural, pois, para
se desvincular da metafísica da Antiguidade, o jusnaturalismo moderno
operou gradativamente uma desconexão que afetou toda a teoria da justiça,
mas, de forma mais decisiva, praticamente erradicou o sentido primeiro de
justiça, a justiça geral, das análises jusprivatistas. A estratégia aqui
aplicada, por conseguinte, busca trabalhar com um dado esquecido, mas
importante, da teoria da justiça que, reitera-se, apresenta uma
racionalidade tratada pelas diversas correntes do formalismo e do
funcionalismo, como foi possível demonstrar nos capítulos anteriores.
312 No mesmo sentido de Waddams parece ser a posição mais recente de George
Fletcher: “In this paper, I a ddress some of the difficulties of reducing tort law to a
few basic principle s. I shall sidestep economic approa ches to law and concentra te
on claims of principle inspir ed by considerations of fairness both to the victim and
to the injuring defendant. The exposition reflects the more genera l tension between
normative and interpretative ar gument. At times I shall be addr essing arguments
for reforming the law; at times, principles and perspectives implicit in the common
law. In the course of the discussion, I shall criticize both Epstein 's and my own
prior work and, in general, stress the impediments that mark the p ursuit of order
and coher ence in tort theory” (FLETCHER, op. cit., p. 64).
313 Poder-se-ia referir que a posição de Waddams tem um fundamento histórico, pois,
como é sabido, o direito romano e o direito medieval não indagavam de uma
sistematização racionalista do direito, que a sistematização totalizante seria uma
obsessão moderna. Contudo, cabe lembrar que, apesar de os romanos não
buscarem uma sistematização do direito, sempre o relacionaram com o seu
fundamento de justiça e e ssa, sim, era compreendida nos ter mos pr imeiramente
aristotélicos, estoicos e, posteriormente, cristãos, visto que, na ordem da polis e da
cidade de Deus, a ordem prévia da justiça geral tem caráter fundamental.

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