O direito privado como justiça distributiva

AutorRafael De Freitas Valle Dresch
Páginas111-175
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CAPÍTULO 2
O DIREITO PRIVADO COMO JUSTIÇA
DISTRIBUTIVA
“Justiça:
mais vale deixar-se roubar do que usar
espantalhos;
tal é o meu gosto.
E é sempre questão de gosto,
nada mais além de questão de gosto.
A Gaia Ciência
Nietzsche , Friedrich
Como anteriormente apresentado, a visão da comutatividade como
a ideia central do direito privado não é aceita por destacadas teorias que se
vinculam a uma tentativa de explicitar uma racionalidade para o direito
privado. Por estabelecerem uma análise centrada mais nas funções do que
na forma, essas análises acabam por determinar uma racionalidade
funcional ao direito privado, ou seja, uma análise que determina uma
compreensão do direito privado e de seus institutos em função de
finalidades sociais e econômicas que são almejadas. Assim, numa
compreensão focada em fins e funções coletivos, o direito privado acaba
por ser entendido segundo uma forma distributiva, pela qual direitos e
deveres são distribuídos aos sujeitos com base na forma que atenda a esses
fins, mais especificamente, na melhor distribuição funcional.
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2.1 O SURGIMENTO DO COLETIVISMO
FUNCIONALIZANTE
A concepção do funcionalismo do direito privado nas suas diversas
vertentes (social, econômica, entre outras) entende que esse ramo do
direito fornece instrumentos a serem utilizados para alcançar,
principalmente, fins econômicos e sociais desejáveis numa dada realidade
social187. O contrato, a propriedade, a empresa, a responsabilidade civil,
serviriam como instrumentos para estabelecer, por exemplo, uma
distribuição eficiente de custos de acidentes (análise econômica do
Direito), ou para implementar a redistribuição da riqueza e a proteção aos
mais frágeis (Direito Social), dependendo da corrente funcionalista que se
está a analisar. O funcionalismo, por conseguinte, sacrifica a estrutura
formal própria das relações privatistas, centrada no fim específico de
manutenção da igual liberdade, e se direciona a objetivos contingentes
(como punição de infratores, proteção ao mais frágil, equilíbrio de poder
nas relações, socialização de riscos ou distribuição de custos de acidentes)
que podem ser alcançados através da aplicação desses institutos de direito
privado nas relações estabelecidas em sociedade.
Contudo, antes de adentrar na análise das principais correntes
funcionalistas, assim como procedido em relação ao formalismo, é mister
traçar um breve apanhado histórico, a fim de demonstrar as origens e os
fundamentos dessa visão funcional. Com efeito, o surgimento de uma
visão moderna coletivista, contraposta à visão do individualismo liberal
que dominou os primeiros séculos da era moderna, surge, principalmente,
com correntes do pensamento que se evidenciaram no século XIX, dentre
essas correntes da filosofia e sociologia em geral, merecem destaque os
pensamentos de Hegel, Marx, Comte e Bentham188. Nesse sentido,
importante é a descrição de Wieacker:
187 Vide a análise anterior sobre os fundamentos do funcionalismo: DRESCH, op. cit.,
p. 68.
188 Sobre o surgimento do coletivismo, vale ressalvar a análise de Villey: “No capítulo
anterior, censurávamos o sistema individualista por haver falseado o ideal do
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No entanto, a partir da segunda metade do séc. XIX,
começou a impor-se como pano de fundo a concepção
de princípio de que o direito er a uma função da
realidade. Estas correntes declaram-se já partidárias
daquele na turalismo que, no nosso século, haveria de
inundar a tradição jurídica. No séc. XIX elas eram em
geral tributária s do positivismo naturalista fundado
por Comte e que seria transportado para a explicação
da vida natural pelas gr andes descobertas de Darwin
e, para a explicação da vida moral, sobretudo por
Nietzsche (p. 652). A crítica filosófica renovada do
positivismo jurídico remonta a esta época.
(...)
Todas estas correntes estavam de acordo apenas nestes
pressupostos negativos, embora se encontrassem em
conflito umas com as outr as, como sempre a contece,
quando são destruídos os fundamentos culturais de
uma antiga imagem de sociedade. F oi na crítica do
utilitarismo individualista ao desbotado idealismo e ao
realismo conceitual da jurispr udência dominante que
se exprimiu com mais clareza o novo espírito da época.
direito, ao abandonar o ponto de vista que deveria ser o do juiz (cujo dever é ser
imparcial) para adotar o do advogado, que se limita a ver os interesses de uma
única causa particular, a do indivíduo que defende. Sob a aparência de aplicar leis
gerais e iguais para todos (mas iguais apenas na forma e aparentemente), o sistema
de Locke e do Código civil beneficiava apenas alguns, os proprietários.
Sem dúvida há a este respeito poucas diferenças entre a ideologia burguesa de
1789 e as ideias organicistas, coletivistas ou socialistas que a sucederam; a não ser
pelo fato de uma casta de privilegiados ter sido substituída por outra.
Eis que agora se subordina o direito ao interesse do Todo. Mas o todo social não
sendo tão real como o são os indivíduos, é de se temer que esta oper ação camufle
o serviço a uma oligarquia: aos nobres ou aos altos funcionários nos quais se
suporão encarnados os interesses do Estado, à classe militar que defende a honra
da nação, aos membros do partido que pretende representar o povo, ou aos
tecnocratas da economia... cujas políticas servem à cabeça em detrimento dos
membros” (VILLEY, op. cit., p. 175).

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