Direitos trabalhistas como direitos LGBTI+: uma leitura queer dos retrocessos sociolaborais no STF/Labor rights as LGBTQ rights: a queer reading of socio-labor setbacks in Brazilian Supreme Court.

AutorNicoli, Pedro Augusto Gravatá
  1. Introdução

    Em contraste com a narrativa que apresenta o Supremo Tribunal Federal (STF) como um espaço homogeneamente progressista em pautas jurÃÂdicas de gêneros e sexualidades dissidentes na última década, esse artigo parte de uma leitura mais complexa da atuação da Corte, sobretudo no que concerne aos direitos sociais, observando que diversas decisões recentes afetaram de forma direta e profundamente negativa a vida de pessoas LGBTI+. Para tanto, pretende-se lançar luzes sobre o impacto imediato, sensÃÂvel, vivido, encarnado, de retrocessos sociais afiançados pelo STF na vida de pessoas LGBTI+, especialmente em matéria trabalhista. E, assim, propor a ideia de direitos trabalhistas como direitos LGBTI+.

    O ponto de partida é uma crÃÂtica de identidades compreendidas como tais de modo isolado. Para pessoas LGBTI+, a vivência de suas identidades de gênero e sexualidade não se passa em abstrato: são LGBTI+ enquanto vivem a materialidade da vida, enquanto se relacionam, enquanto se movimentam socialmente, enquanto buscam a sobrevivência. E, numa sociedade capitalista, que segue fundada na extração do valor do trabalho das pessoas, vivem suas vidas LGBTI+ enquanto trabalham, de maneira protegida ou precária; de maneira pobre ou violentada; informal ou ilegal; ou, ainda, quando sequer podem trabalhar.

    Consideradas as condições materiais que co-consituem essas existências, toma-se como suposto a leitura da proteção social e trabalhista a partir da perspectiva das vidas LGBTI+, tratando-a não como elemento acessório, mas como condição inseparável das possibilidades de ser e viver como LGBTI+ na materialidade de uma sociedade de classes.

    O objetivo geral é, a partir da análise do conjunto decisório do STF em matéria de trabalhista, com especial destaque para aquelas afetas ao tema da terceirização, compreender como as vidas de pessoas LGBTI+ têm sido especificamente precarizadas a partir de retrocessos jurÃÂdicos não dirigidos, de modo imediato, às temáticas de gênero e sexualidade.

    Propõe-se pesquisa teórica e análise jurisprudencial, com angulação atÃÂpica tanto para as correntes intelectuais adotadas quanto para as decisões analisadas. Isso porque, de um lado, se manejarão imediatamente decisões do STF que não tratam de temas LGBTI+ em sua superfÃÂcie. E, de outro, far-se-á sua análise crÃÂtica a partir de construções da teoria queer e de suas entradas no debate jurÃÂdico. A atipia vem justamente de um certo alheamento que ainda parece existir, separando dois universos--trabalho e identidades de gênero e sexualidade--, que não se separam na vida.

    A primeira parte do artigo se dedica a compreender as formas de inserção de pessoas LGBTI+ no mercado de trabalho brasileiro, no que diz respeito àsua particular precariedade. Apesar da consideração àheterogeneidade de itinerários profissionais e econômicos dessas pessoas, se dará atenção àforma como a legislação trabalhista distribui a precariedade para corpos preferenciais.

    Exploram-se experiências como a legislação especÃÂfica para o setor de salões de beleza e as escolhas regulatórias incidentes sobre a prostituição, espaços de grande presença de pessoas LGBTI+ (NICOLI; RAMOS, 2020). Chega-se, então, àterceirização, especialmente a partir do setor de teleatendimento, no qual há significativa presença de jovens LGBTI+ (VENCO, 2009; FLEURY, 2020) e em que foram gestadas e aprofundadas muitas das práticas precárias do trabalho terceirizado.

    A segunda parte consistirá em uma apresentação do conjunto de decisões do STF a ser analisado. O foco, aqui, será especificamente dirigido às decisões que, no ano de 2018, inauguraram jurisprudencialmente a ampliação (que, em seguida, foi legitimada também pela via legislativa) das possibilidades da terceirização trabalhista no âmbito da iniciativa privada, tornando-a irrestrita no paÃÂs. Serão particularmente explorados os fundamentos das decisões proferidas no bojo do julgamento da ADPF no 324 combinado com o julgamento do RE 958.252, com repercussão geral (Tema no 725), e do julgamento do RE 791.932, também com repercussão geral (Tema no 739).

    Nesses dois julgamentos paradigmáticos, a Corte Constitucional se posicionou em face da problemática da terceirização trabalhista e de suas incompatibilidades com o nosso sistema de proteção social. Afirmou, ao cabo, que as restrições impostas pela justiça do trabalho àpossibilidade de contratação terceirizada pelos empregadores ofenderiam a liberdade de iniciativa assentada no texto constitucional.

    Além das contradições que permeiam o julgamento do ponto de vista da restrição dos direitos sociais e de uma leitura desconstituinte do direito do trabalho (PAIXÃO, 2020), em favor da afirmação de uma perspectiva neoliberal para a regência das relações de trabalho e de uma jurisprudência de austeridade (FERREIRA, 2012), pretende-se explorar, nesses julgados, a suposta tutela de um sujeito-trabalhador tÃÂpico, cujo trabalho seria objeto do arranjo terceirizado e que não seria, afinal, impactado negativamente pela forma de contratação.

    As referências e exemplificações constantes dos julgados, analisadas em suas entrelinhas, revelam que a Corte não assimila com centralidade nem os impactos da forma de contratação sobre a precarização da vida e do trabalho desse sujeito-trabalhador invocado, tampouco acomoda no argumento jurÃÂdico, com equidade, a possibilidade de esse sujeito ser, diversamente do sujeito homem-branco-cis-hetero, alguém cujo corpo e cuja sexualidade implicam a restrição das formas de acesso ao trabalho formal e uma maior vulnerabilidade exatamente a arranjos contratuais precários, que invisibilizam e esvaziam os direitos atinentes ao trabalho formal, como é o caso da terceirização.

    O ponto, ainda, dá atenção ao pano de fundo dessas decisões na arena ambÃÂgua do Supremo. De um lado, com os avanços em matéria de direitos LGBTI+ classicamente entendidos com tais. E, de outro, com os muitos e graves retrocessos em matéria trabalhista (COUTINHO, 2021; DUTRA; MACHADO, 2021), que consolidaram o STF na posição soturna de uma Corte anti-trabalhadoras e trabalhadores.

    A terceira e última parte, ensaiando possÃÂveis conclusões, propõe uma leitura dessas decisões a partir de algumas construções da teoria queer, particularmente de uma crÃÂtica queer ao direito. Parte-se da ideia de precariedade (BUTLER, 2015) e vai-se àcompreensão desse duplo movimento, concomitante, que é complexificada a partir da reflexão de autoras como Wendy Brown (1995), em sua leitura da individualização dos problemas sociais na linguagem dos direitos numa sociedade neoliberal, e Dean Spade (2015), na demonstração do impacto sensÃÂvel para corpos LGBTI+ de outras esferas da regulação que não as das identidades.

    Com isso, pretende-se recusar uma leitura unidimensional ou até melancólica que poderia se dirigir aos direitos LGBTI+, propondo a expansão de sua compreensão, a partir da ideia de direitos trabalhistas como direitos LGBTI+. Aqui, insiste-se e elabora-se a ideia de imbricação da identidade e vida concreta e do trabalho como condição definitiva para a vivência de gênero e sexualidade. E, percebendo-se num tempo em profundas disputas, passa-se a ler a luta contra os retrocessos sociais como uma luta jurÃÂdica também LGBTI+. Mas, ao mesmo tempo em que acredita, segue desconfiando, num gesto próprio ao queer, ao entender também que para muitas pessoas LGBTI+ (especialmente as trans, pobres e pretas), a própria experiência do trabalho e, sobretudo, do trabalho com direitos trabalhistas, ainda é tida como um privilégio--um privilégio da servidão heterocis, para parafrasear e expandir a construção de Ricardo Antunes (2018).

    A principal conclusão esperada é um aprofundamento crÃÂtico desse duplo movimento do STF, que é, em larga medida, um duplo movimento do direito contemporâneo: avanços e retrocessos concomitantes e disputados. A formulação que se propõe, diante de um recorte especÃÂfico e de aproximações teóricas não muito comuns, pode contribuir diretamente para a pesquisa de campo nos direitos LGBTI+. Seja ao negar leituras unidimensionais e triunfantes, reforçando o peso e a permanência das disputas, inclusive nas Cortes entendidas como eruditas e progressistas, seja ao estimular o imaginário ao redor desses direitos, sinalizando para futuros que sejam futuros feitos de carne e osso.

  2. Pessoas LGBTI+ são pessoas LGBTI+ também no mundo do trabalho: um arco-ÃÂris de precariedade laboral

    Reduzir a discussão das vidas LGBTI+ àchave das identidades é deixar de compreender um fato elementar: pessoas LGBTI+ são pessoas LGBTI+ em todas as esferas em que circulam. E, por esta razão, enfrentam a partir dessa posição especÃÂfica todos os desafios que se colocam para a constituição dessa própria vida. Desafios que englobam os complexos processos psicossociais de afirmação de si, mas que também tocam esferas da produção da vida material e social que, de formas diretas ou indiretas, tornam esses processos mais ou menos difÃÂceis. à o caso do que se passa no mundo do trabalho. Para a maioria esmagadora das pessoas LGBTI+ a vida que vivem é marcada pela vulnerabilidade socioeconômica (MARSJIAJ, 2003; BADGETT; CHOI; WILSON, 2019). Por isso dependem do próprio trabalho. Já se parte, aqui, portanto, de, no mÃÂnimo, uma dupla condição: a...

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