Discriminação Estética/Aesthetic Discrimination.

AutorMoreira, Adilson José

Introdução

Apesar do número cada vez maior de trabalhos que abordam o tema da discriminação no mundo corporativo, reflexões sobre algumas de suas manifestações permanecem escassas ou inexistentes, realidade que impede o combate de práticas sociais que causam danos significativos a muitas pessoas. Uma delas está relacionada com normas institucionais - muitas vezes oficiais, muitas vezes informais - que estabelecem um padrão visual a ser seguido na contratação e promoção, podendo também ser motivo de demissão. Esses parâmetros não são gratuitos, uma vez que correspondem a ideais estéticos correntes, referências utilizadas de forma constante para o julgamento da competência profissional de candidatos e candidatas a emprego. Eles também operam como fundamentos para a determinação das atribuições de funcionários e funcionárias, embora não tenham absolutamente nenhuma relação com qualquer tipo de qualificação relevante para o desempenho de atividades profissionais. Muitos julgados fazem referência a esse tipo de discriminação, mas quase nenhum deles reconhece essa prática como uma manifestação particular de discriminação que precisa ser analisada a partir de critérios especÃÂficos pelo nosso sistema judiciário. Eles geralmente classificam esses comportamentos como expressão de outras formas de arbitrariedade, tais como o racismo, o sexismo, a gordofobia ou o assédio moral. Embora esse procedimento garanta ressarcimento econômico pelos danos causados por empregadores às vÃÂtimas desse tipo de tratamento desvantajoso, a ausência de um entendimento dos processos culturais e institucionais envolvidos no fenômeno da discriminação estética trazem prejuÃÂzos consideráveis a várias pessoas ao longo de toda a vida laboral.

Três exemplos que retratam situações bastante comuns nos ajudam a entender esse fenômeno de forma mais objetiva. Edweyne Martins foi impedido de cumprir sua jornada de trabalho em função de uma norma que impedia funcionários de uma empresa de transporte urbano usarem barba ou cavanhaque; a violação dessa regra implicaria sanções disciplinares. O sindicato que congrega os trabalhadores da classe ajuizou uma ação requerendo a declaração da invalidade dessa norma por ser, segundo eles, discriminatória. O Tribunal Superior do Trabalho entendeu que ela estabelece um padrão de aparência pessoal que viola o direito de as pessoas poderem controlar a própria aparência fÃÂsica, motivo pelo qual a regra em questão poderia ser classificada como exemplo de discriminação estética. Para o órgão julgador acima referido, não há nenhuma correlação entre essa exigência e as habilidades necessárias para o desempenho de qualquer função, nem há algum aspecto caracterÃÂstico da atividade profissional que justifica essa norma, uma vez que ela não pode causar nenhum comprometimento ou risco para os funcionários. A ministra relatora classificou a norma como um exemplo de discriminação estética, mas não ofereceu uma justificação baseada em uma conceituação dela; ela apenas afirmou que a norma era inadequada por ser uma violação de direitos da personalidade. (1)

MarÃÂlia da Silva trabalhava como telefonista em uma empresa. Seus superiores estavam insatisfeitos com sua aparência porque ela mantinha seus cabelos cacheados. Eles exigiram que ela passasse por um processo de alisamento para que se aproximasse do que consideram ser um ideal estético adequado aos padrões da empresa. Além de exigirem que ela submetesse o cabelo a esse tipo de tratamento, seus superiores pediram que ela o mantivesse preso. Sua recusa gerou uma série de humilhações também de colegas brancas: enojadas com o cabelo dessa mulher negra, elas diziam que raspar seria a única solução porque ele era muito feio. O empregador condicionou o emprego ao alisamento, o que levou essa mulher negra a acatar essa exigência. O Tribunal Regional do Trabalho da 12a. Região considerou essa prática como um tipo de discriminação estética, mas não apresentou nenhuma definição precisa desse tratamento discriminatório. O juiz que analisou o caso apenas afirmou que a exigência de alisamento pode ser classificada como uma interferência indevida na esfera pessoal, direito que não assiste aos empregadores. (2)

Joilda Oliveira de Abreu é uma mulher negra que trabalhava em uma grande rede internacional de supermercados. Seu chefe sempre fazia referências pejorativas àsua obesidade, dizendo que mulheres tão gordas como ela não deveriam ter contato com os clientes. Esse tipo de comportamento também era reproduzido por outros funcionários, pessoas que, seguindo o exemplo do chefe, faziam comentários jocosos persistentes em relação a ela, o que a motivou a pedir demissão e processar a empresa. O Tribunal Superior do Trabalho identificou a incidência do racismo e do sexismo, mas não ofereceu uma análise dos motivos pelos quais esses dois tratamentos discriminatórios poderiam ser classificados como discriminação estética ou sobre a dinâmica deles dentro dessa manifestação de práticas discriminatórias. (3)

Tendo em vista a ampla frequência e invisibilidade desses casos, a quase inexistência de trabalhos que abordam esse tema e a ausência de compreensão da dinâmica interna do fenômeno da discriminação estética, este artigo examina as práticas institucionais que buscam a homogeneização do corpo de funcionários de empresas privadas por meio de preferências estéticas. Nossos tribunais estão certos: esse fenômeno que pode ser classificado como uma prática discriminatória porque viola direitos da personalidade, suprime a autenticidade dos indivÃÂduos, além de ter um impacto desproporcional sobre membros de grupos subalternizados. Entretanto, é preciso entender as particularidades de sua dinâmica interna. A discriminação estética ocorre por meio da imposição de padrões de beleza com o propósito de padronizar a aparência dos funcionários, o que acaba por acarretar problemas na preservação da diversidade da população brasileira dentro do espaço laboral, além de restringir oportunidades profissionais para membros de vários grupos, em especial mulheres e grupos raciais subalternizados.

Embora não seja prevista em qualquer norma legal, a não ser que incida em algum critério juridicamente protegido, a discriminação estética está amplamente presente no espaço laboral, um problema que afeta todos os indivÃÂduos que não correspondem aos ideais de beleza que adquiram força normativa na sociedade brasileira. Estamos então diante da seguinte questão: a pressão por conformidade estética no setor privado pode ser considerada uma violação dos princÃÂpios da igualdade, da dignidade humana e da justiça social previstos na Constituição Federal? Partiremos da hipótese de que podemos classificar esse fenômeno como uma prática discriminatória porque traz desvantagens significativas para muitos indivÃÂduos, violando então um aspecto relevante do princÃÂpio constitucional da igualdade que é a equidade de tratamento entre pessoas igualmente situadas, preceito central também das noções de dignidade humana e da justiça social. (4)

Acreditamos que esta investigação seja muito relevante para o avanço dos estudos do Direito Antidiscriminatório, uma vez que ela nos permitirá compreender a dinâmica interna de práticas que impõem desvantagens a parcelas significativas de nossa população. Também trabalharemos com a hipótese de que a discriminação estética possui um caráter interseccional porque agrava ainda mais a situação de pessoas que já se encontram em uma posição de desvantagem, o caso de pessoas que são membros de dois ou mais grupos subalternizados. Isso ocorre porque a proximidade com o ideal estético branco é um requisito para que as pessoas possam ter acesso a oportunidades profissionais, uma vez que ela pressupõe maior respeitabilidade social. À questão racial, somam-se outros critérios que expressam preferências estéticas, o que torna indivÃÂduos que pertencem a mais de um grupo subalternizado vÃÂtimas de um problema que os acompanha em todos os setores da vida.

Além de teorias de discriminação e de conceitos da psicologia social da discriminação, recorreremos a estudos sociológicos sobre a beleza para entendermos a dinâmica psÃÂquica e cultural dos julgamentos estéticos. Observaremos que eles são valorações morais amplamente relacionadas com a institucionalização de um padrão de beleza identificado com traços fenotÃÂpicos de pessoas racializadas como brancas, especialmente aquelas de aparência ariana. Esse ideal estético é insistentemente difundido nos meios de comunicação de massa, sendo um aspecto central do processo de socialização dos indivÃÂduos. Mais do que isso, eles são utilizados por membros de todas as culturas e de todas as raças, indistintamente. Embora não se resuma àimposição de traços fenotÃÂpicos brancos que se tornaram critérios universais de julgamentos estéticos, a discriminação estética expressa uma tentativa de empresas em promover a homogeneização do corpo de funcionários com a intenção de estabelecer uma associação entre qualidades de serviços e aparência fÃÂsica, mecanismo que beneficia certos grupos de pessoas e prejudica outros de forma sistemática. A...

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