Discriminação

AutorBárbara Ferrito
Ocupação do AutorMagistrada e pesquisadora do Direito do Trabalho
Páginas133-168
133
4Discriminação
Lançada está a incongruência. Como visto nos capítulos anteriores, as
mulheres não foram consideradas no molde do operário ideal, desde o período
fordista, agravando-se com a flexibilização cada vez mais radical adotada na
contemporaneidade. Uma névoa de essencialismo, estereótipos e mitos abraça
a inclusão das mulheres no mercado de trabalho. As mulheres, no entanto,
permanecem firmes: não há retrocesso possível! Nesse cenário, às mulheres pes-
quisadoras não resta outra alternativa a não ser procurar entender esse fenômeno,
essas inadequações e esses desconfortos.
Uma das facetas desse cenário se apresenta na persistência do quadro de
desigualdade profunda entre os gêneros, que se mantém apesar das mudanças
culturais e normativas efetuadas. Para avaliar as razões dessa constância, uma
via possível seria analisar a discriminação das mulheres no mercado de trabalho,
pensando no papel do Direito nesse contexto. É dizer, considerando a estrutura de
mercado de trabalho e a partir da noção de discriminação indireta, como a atuação
do Direito é capaz de instituir e fomentar a discriminação.
Para tal fim, considerar-se-á como mercado de trabalho o local onde as trocas
de força de trabalho ocorrem. Seria, pois, “arranjo institucional em que vendedores
e compradores de trabalho realizam suas transações” (HORN, 2006, p.179). Não se
trata, portanto, de um dado natural, mas de uma estrutura social típica de siste-
mas capitalistas, com duas funções importantes: disponibilizar força de trabalho
para os diversos fins na cadeia produtiva; e garantir ingressos para os participan-
tes das trocas (HORN, 2006, p.179). Compreendido esse local não físico, o passo
seguinte consiste na análise de conceitos referentes à igualdade e discriminação,
a fim de compreender como a noção de discriminação indireta fornece novos ins-
trumentos para a apreensão desse fenômeno.
Finalmente, de posse dessas reflexões, será possível examinar o papel do
Direito, não mais como agente promotor da igualdade, mas instituidor e fomen-
tador dessas desigualdades existentes no mercado. Considerar essa faceta do
Direito, não significa reduzi-lo a isso. O Direito é instrumento de promoção da
igualdade, mas também atua como agente de discriminação.
134
4.1. ESTRUTURA SOCIAL E MERCADO DE TRABALHO
A conformação do mercado de trabalho coloca-se como altamente ofensivo
às mulheres, que procuram se adaptar ao ideal de labor não moldado a sua reali-
dade, ao tempo em que mantém antigos papéis sociais, dos quais não conseguiram
se desvencilhar. Não há, aqui, um agente ao qual poderiam ser imputadas as con-
dutas que dão causa as lesões sofridas pelo coletivo de mulheres. O agente, na
verdade, se confunde com o “local” dessas ofensas: “uma formidável abstração, sob
o nome quase indefinível de mercado” (BOURDIEU, 2005, p.18).
Apesar de ocupar certo protagonismo nas questões envolvendo o trabalho
e as relações a esse subjacente, o mercado de trabalho figura como personagem
desconhecido e pouco analisado. Colocando-se o trabalho como forma de inserção
do indivíduo na sociedade, bem como principal mecanismo de obtenção de renda
para sustento, parece inadequada essa posição coadjuvante.
Para Bourdieu(88), de fato, a economia, vista de forma pura, considera seus
institutos quase como algo dado pela própria natureza, olvidando tratar-se de
construções sociais, produzidas pela história (BOURDIEU, 2005, p. 17). Para
embasar esta afirmação, o autor demonstra que o mercado seria, na verdade, pro-
duto de uma dupla construção social: a construção da demanda e a construção
da oferta, para as quais o Estado, muitas vezes, colaborou. Assim, os sujeitos da
ação econômica decidem desde hábitos e rotinas consolidadas a partir da histó-
ria do agente e não por intermédio de uma racionalidade unicamente econômica
(BOURDIEU, 2005, p. 18). Desprezar essas influências histórico-culturais às
decisões econômicas implica em invisibilizar as verdadeiras razões que originam
juízos econômicos. Segundo Gustavo Silva, o hábito libera o indivíduo de proces-
sos decisórios em certas ocasiões, gerando conformidade e eficiência (SILVA,
2010, p.35), fornecendo respostas programadas a partir das experiências.
Para a sociologia, é difícil negar a influência que o contexto social produz
sobre o mercado. Além do indivíduo, grupos, relações sociais e outras variáveis, por
exemplo, gosto, conhecimento, educação, etnia e família, podem influenciar a ação
econômica” (SILVA, 2010, p.43). São as relações sociais e as interações entre os
indivíduos aspectos relevantes(89) para a produção da racionalidade econômica,
por isso “o mercado é analisado como estrutura social e não simplesmente como
(88) O autor trata aqui do mercado em geral, mas suas reflexões são pertinentes também
na análise do mercado de trabalho.
(89) Afirmar a importância e influência da cultura não importa no esquecimento dos
aspectos econômicos que também regem a configuração do mercado de trabalho. Frisam-se
tais pontos, pois são mais comumente empalidecidos nas análises do mercado de trabalho.
135
processo racional, instrumento de definição de preços ou como lugar físico de relações
de troca” (SILVA, 2010, p.50).
Com o reconhecimento da influência da cultura e da história, e dos sistemas
ocultos de opressão, tais como o sexismo e o racismo, no mercado e, mais espe-
cificamente, no mercado de trabalho, ilumina-se a reprodução dessas estruturas
viciadas, tornando-as perceptíveis. Bourdieu acentua a participação do Estado
na ordenação desse mercado, esclarecendo que, mais do que simples regulador, o
Estado atua incisivamente em sua própria formação (BOURDIEU, 2005, p.40).
O Estado aqui não seria apenas o modelo intervencionista. Nesse sentido, Karl
Polanyi já elucidou a questão, demonstrando que o Estado liberal foi forjado sobre
massiva intervenção do Estado na economia. “A vida do mercado livre foi aberta e
manteve-se aberta graças ao aumento constante de um intervencionismo organi-
zado e controlado centralmente” (POLANYI, 2012, p.194). Mesmo o liberalismo
não foi uma concepção isenta de intervenção estatal, propugnando apenas deter-
minado tipo de interferência.
Desta feita, o mercado de trabalho, como construção social da qual participa
ativamente o Estado, não é um dado natural e imutável. Como estrutura social,
reproduz os mitos, hábitos e imaginários da sociedade, sendo “produto, inten-
cional ou não, da conduta fragmentária de uma miríade de atores cuja conduta,
isoladamente considerada, é tida por normal. Mas o seu resultado é a desigualdade
(WANDELLI, 2013, p.117). Tratando-se do local não físico de compra e venda da
força de trabalho (SILVA; HORN, 2008, p.2), transforma o trabalho humano em
espécie de mercadoria comercializável, que serão ali alocados, e por meio do qual
os participantes receberam seus rendimentos.
Nesse local de troca, desenvolvem-se relações de trabalho que são, em última
instância, espécies de relações sociais. É por meio dessas e de outros fatores, como
normas jurídicas, princípios econômicos etc., que esse mercado é construído. O
resultado dessa implementação, porém, não tem sido um mercado equilibrado
ou igualitário. Pelo contrário, há desigualdade profunda e persistente, como nota
marcante desse lugar.
Dubet (2014, p.17) assevera que, se não é possível dizer abertamente o que é
justiça, sem dúvida a ideia de injustiça se apresenta mais facilmente explicada, ou,
pelo menos, exemplificada. Isso porque a sociedade se organiza a partir de certas
desigualdades não contestadas. Se for considerada justa, a desigualdade simples-
mente não será perceptível, por ser tida como evidente e, porque não, natural. O
sentimento de injustiça não decorre propriamente da violação à igualdade, mas
sim diante das ofensas às “desigualdades hierárquicas legítimas” (DUBET, 2014,
p.24). O autor arremata: “as desigualdades e as injustiças não são fatos, mas pro-
duto de atividades normativas que lhes dão sentido” (DUBET, 2014, p.20).

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT