Feminismo e gênero

AutorBárbara Ferrito
Ocupação do AutorMagistrada e pesquisadora do Direito do Trabalho
Páginas30-76
30
2 Feminismo e Gênero
O dia 8 de março nunca mais foi o mesmo. Reza a história que no dia 8 de
março de 1857, inúmeras operárias da indústria têxtil de Nova York se valeram
de um movimento grevista para reivindicar melhores condições de trabalho e
igualdade de direitos, em especial de salário. A mobilização foi realizada no bojo
de contexto de erupção da consciência feminina acerca da sua própria submissão.
Naquela ocasião, porém, a parede foi fortemente reprimida pela força policial.
Para a historiadora Ana Isabel Álvarez González (1999), porém, essa narrativa não
se comprova.
Para a autora, tanto o movimento grevista de 1909, quanto o incêndio na The
Triangle Shirtwaist Company, não se apresentam como origem da celebração do
Dia Internacional da Mulher, mas foram apontados historicamente como estraté-
gia para retirar a ascendência socialista do movimento. O Dia da Mulher foi criado
pelo Partido Socialista Americano, em 1909, para ser celebrado no último domingo
de fevereiro, como forma de congregar as mulheres a refletirem sobre essa con-
dição e incrementar seu interesse no Partido, para a filiação, após a aprovação do
direito ao sufrágio.
Foi, porém, na II Conferência Internacional, celebrada em Copenhague,
nos dias 26 e 27 de agosto de 1910, que Clara Zetkin apresentou uma moção para
criação do Dia Internacional da Mulher (ÁLVAREZ GONZÁLEZ, 1999, p.171),
inspirando-se no Woman´s Day estadunidense. Nos primeiros anos, a data foi
celebrada em dias diferentes em cada país. Apenas em 1914 teve início a unifor-
mização da data para o dia 8 de março, mês escolhido em razão de sua importância
no calendário revolucionário — a revolução de 1848 (ou Primavera dos Povos) e a
comuna de Paris, de 1871. Não haveria relatos sobre as razões que levaram a esco-
lha do dia 8, embora haja quem aponte a homenagem a Clara Zetkin(7).
Passados mais de 160 anos, a data ganha novamente forte carga simbólica,
sendo marcada por múltiplas manifestações de mulheres ao redor do mundo,
levantando as mais diversas pautas.
(7) Apesar de Álvarez González (1999) indicar a data do dia 8 como homenagem à Clara
Zetkin, não resta evidente qual o critério dessa cortesia, já que o aniversário da jornalista
seria em 5 de julho.
31
Nesse cenário de agitação social, por meio da qual se procura questionar
dogmas da estrutura social, como as questões referentes ao gênero, à raça e à
classe, qualquer pesquisa sobre a discriminação das mulheres no ambiente labo-
ral não poderia se esquivar da missão de contextualizar os debates sobre gênero e
feminismo.
2.1. GÊNERO E FEMINISMO
Apesar do termo “gênero” ter sido posto em dúvida pelas teóricas feministas,
é possível a sua utilização como ferramenta de estudo das questões relacionadas à
discriminação das mulheres. É certo, ainda, que, tratando-se de vocábulo próprio
das ciências humanas, apresenta-se sem delimitação conceitual. Assim, diversas
teóricas desenvolvem conteúdo próprio para a palavra, sem que sejam, a princípio,
excludentes entre si.
De forma bem sucinta, é possível afirmar que gênero indica o papel desem-
penhado na sociedade, a partir de sua marcação biológica, em razão dos desenhos
institucionais desta. Desde pronto, pode-se pensar no conceito de Susan Moller
Okin, para quem gênero seria a “institucionalização social das diferenças sexuais”
(OKIN, 2008, p.306). Desta feita, gênero seria o complexo de discursos e valores
cunhados pela sociedade, por diversos mecanismos (escola, família, mercado de
trabalho, religião etc.), para diferenciar homens e mulheres, definindo-lhes papéis
e status sociais (RODRÍGUEZ-PIÑERO BRAVO-FERRER, 2006, p.7).
Dito isso, neste capítulo pretende-se abordar de forma sistematizada as
diversas vertentes do feminismo, bem como sua apresentação no desenrolar da
história da humanidade. Inserida nessa linha, a noção de interseccionalidade,
como leitura capaz de perceber e trabalhar as confluências de marcadores de
opressão ganhará relevo, na medida em que a questão de gênero não se apresenta
isolada do mundo.
Os estudos feministas colocam-se, ainda, com elevada carga de interdis-
ciplinaridade, uma vez que suas dimensões buscam questionar, desconstruir
e reconstruir diversos pilares da estrutura da sociedade atual. Por essa razão,
também o Direito haveria de ser afetado por essa ebulição de ideias, sendo vital
apreciar a relação entre a teoria feminista e o papel do Direito no projeto de socie-
dade que aquela busca.
Após essa digressão teórica, é imprescindível apresentar o foco de interseção
entre a teoria feminista e o Direito do Trabalho, que seria a ideia de divisão sexual
do trabalho. Termo próprio da sociologia do trabalho designa a diferenciação de
atribuições sociais relativas ao labor em razão do gênero. Essa clivagem gera
32
impactos nas relações de trabalho, sendo capital a análise deste fenômeno para o
exame da discriminação de gênero. Será possível, após esses exercícios, examinar
a conformação do mercado do trabalho das mulheres, com a identificação das
diversas violências sofrida por elas, a fim de entender como o gênero atua no mer-
cado de trabalho.
2.1.1. As ondas e as vertentes do feminismo
É comum encontrar a explicação das vertentes feministas a partir de suas
“ondas”. Apesar de o termo receber algumas críticas, sua utilização tem espaço
uma vez que já consolidada na teoria feminista. De toda sorte, à simetria da ideia
de geração dos direitos humanos, cabe frisar que as diversas vertentes do femi-
nismo não surgiram de forma linear no tempo e no espaço. São histórias e visões
de mundo que se entrelaçam, formando uma rede de teorias e pensamentos que
buscam dar conta do fenômeno da opressão das mulheres pela estrutura social
hegemônica. Ademais, o correto não seria falar em evolução, na medida em que o
termo traz em si a ideia de aprimoramento, o que não tem espaço nesta discussão.
Isso porque as correntes feministas trazem perspectivas diversas para o problema
da opressão, mas não há uma que se sobreponha(8). Nesse particular, interessante
esclarecer desde pronto que as vertentes não são necessariamente excludentes
entre si. Outro ponto que deve ser esclarecido refere-se à própria classificação
como feminista. Nesse sentido, Céli Pinto fala em feminismo difuso, cujos mili-
tantes seriam homens e mulheres que, muitas vezes, não se identificam como
feministas, nem possuem uma vertente teórica a qual se filiam, mas se portam, no
discurso e na ação, de forma a questionar o complexo de estruturas de dominação
(PINTO, 2003, p.92-93). Assim, a questão de gênero e das mulheres em si não se
esgota nas discussões das que se autodeclaram feministas.
Ultrapassada essas explanações iniciais, o movimento feminista tem seu
início atribuído às agitações do século XIX, principalmente nos Estados Unidos,
mas também na Europa. Esse movimento inicial, denominado de feminismo libe-
ral ou moderado, foi marcado por mobilizar as mulheres da classe média burguesa,
por mais direitos das mulheres, tendo como bandeira principal o direito ao voto.
(8) Nesse sentido, Marina Santos contribui com o debate, ao afirmar “que a distinção
em grupos ou correntes aqui exposta tem a função exclusiva de facilitar a compreensão
das contribuições oferecidas, dada a variedade de pensamentos feministas existentes,
não significando, em sentido diverso, uma limitação das possibilidades críticas das
teóricas citadas ou mesmo que elas estejam de acordo com as correntes em que foram
enquadradas. Assim, como rótulos utilizados com a finalidade estrita de facilitar o acesso
ao conhecimento, convém que sejam, em seguida, abandonados, liberando-se, teorias e
teóricas, para a contínua ressignificação e reconstrução dos termos de seus pensamentos”
(SANTOS, 2016, p.113).

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT