Dissonância e polifonia no processo penal brasileiro: o direito ao intérprete de línguas indígenas como garantia do sistema acusatório/Dissonance and polyphony in Brazilian criminal proceedings: the right to the interpreter of indigenous languages as a guarantee of the accusatory system.

Autorda Silva, Tédney Moreira

Introdução

O acesso àJustiça, como princÃÂpio basilar das sociedades modernas marcadas pela assunção do Estado Democrático de Direito, desdobra-se em várias nuances que revelam os inúmeros obstáculos impostos pela desigualdade social: neste sentido, o elevado custo dos processos judiciais, a precariedade dos órgãos de atendimento judicial gratuito e a vulnerabilidade econômica que afeta os grupos marginalizados dificultam o encaminhamento de suas demandas ao Judiciário. Do mesmo modo, o racismo estrutural e o etnocÃÂdio, presentes em órgãos judiciais, reforçam o lugar de subalternidade atribuÃÂdo às pessoas negras, afrodescendentes e aos povos originários e tradicionais.

À garantia do acesso àJustiça opõem-se, portanto, embaraços que são ocasionados por atos, antecedentes e concomitantes ao atendimento judicial, que veiculam as violências de classe, étnico-racial e de gênero e que, como categorias do exame crÃÂtico do funcionamento do sistema de justiça, revelam as fissuras que estão presentes na pretensa coesão social.

Entre tais marcadores sociais desta desigualdade incluem-se as dificuldades inerentes àprópria comunicação entre o Judiciário e os jurisdicionados, não só pelo empoeirado rebuscamento linguÃÂstico dos atores envolvidos, mas, também, pela não recepção ou facilitação da própria comunicação em si, notadamente quando, entre as partes, encontram-se falantes de lÃÂngua materna (original ou nativa) diversa da oficial (ou padrão) lÃÂngua portuguesa.

A oposição feita entre lÃÂngua materna e lÃÂngua padrão e a submissão daquela a esta (quando se afirma que existe um único modo correto de linguagem) são tecnologias de um poder distribuÃÂdo desigualmente em sociedades multiculturais. A definição de certo e errado, em termos linguÃÂsticos, espelha preconceitos e hierarquias em sociedade e, por consequência, define o lugar que cada um de seus emissores ocupará nas instituições públicas e privadas. Em tese isento de discriminações, o Judiciário corrobora tais distinções quando impede ou dificulta a utilização de lÃÂnguas nativas no curso do processo judicial e, ao mesmo tempo que viola o efetivo acesso àJustiça, revitimiza os jurisdicionados por meio de sua exclusão na produção de discursos que compõem a narrativa final do conflito examinado pelo Estado-juiz.

Esta exclusão, contudo, não se opera por mero preconceito linguÃÂstico: a ignorância quanto àrelevância e a imprescindibilidade, por vezes, da utilização das lÃÂnguas nativas, caracteriza-se antes como um mecanismo instrumental àformação da convicção de juÃÂzes, que, ao arrogarem para si a tarefa exclusiva de exame da culpabilidade dos agentes, veem nesta a autorização para a renúncia do necessário reconhecimento daquelas lÃÂnguas, na hipótese de haver elementos que ratifiquem a versão da acusação.

Com o intuito de refletir sobre a funcionalidade polÃÂtica e os efeitos desses atos de silenciamento das lÃÂnguas indÃÂgenas no âmbito do processo penal brasileiro, desenvolvemos a pesquisa em três seções.

Em primeiro lugar, discutimos sobre a possibilidade de realização de um diálogo intercultural, considerada a assimetria entre povos originários e sociedade não-indÃÂgena, o que interfere no estabelecimento de uma relação processual equânime; em segunda seção, caracterizamos o direito ao uso das lÃÂnguas originárias (ou maternas) como uma espécie de direito humano contemplado por organismos e acordos internacionais reconhecidos pelo ordenamento jurÃÂdico brasileiro e apresentamos as regras relativas ao uso de lÃÂnguas não oficiais no curso do processo penal brasileiro; por fim, na última seção, realizamos uma análise jurisprudencial de nove julgados do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal acerca da produção probatória em lÃÂnguas indÃÂgenas no Brasil e as razões para o (não) acatamento pleno daquele direito humano, o que permite a reflexão acerca da instrumentalidade oculta da sua violação, se realizada.

Nossa hipótese é a de que a não previsão de intérpretes e tradutores de lÃÂnguas indÃÂgenas nos processos criminais que envolvam membros dos povos originários atualiza-se como uma estratégia de silenciamento e de invisibilização da etnicidade nas demandas do Judiciário, tornando o processo penal incapaz de estabelecer um diálogo intercultural e decolonial que, a partir do acolhimento da diversidade, busque a concretização dos ideários de justiça.

  1. Dissonância e polifonia na promoção de um diálogo intercultural

    Considerada como traço integrante significativo do acervo cultural das sociedades, a linguagem é, nas palavras de Inês VirgÃÂnia Prado Soares (2008, p. 84), um guia fundamental para a compreensão da humanidade sobre sua própria trajetória, tanto para a presente, quanto para as futuras gerações. Por meio da linguagem, os indivÃÂduos são capazes de formar sua própria subjetividade a partir da comunicação com o outro, da transmissão e do compartilhamento de ideias e de valores que, cotejados, opostos e ressignificados, geram a possibilidade da coexistência sociopolÃÂtica. É a linguagem, pois, o que garante a construção de identidades e diferenças, ativamente produzidas, discursiva e simbolicamente, no mundo social e cultural (SILVA, 2014, p. 76). Por tais razões,

    [a] linguagem, forma de expressão estreitamente ligada àliberdade e àessência da vida humana, pode ser tratada no plano jurÃÂdico como bem cultural viabilizador de direitos humanos e como vetor do patrimônio cultural imaterial. Nesse sentido, a utilização da lÃÂngua é exercÃÂcio dos direitos culturais linguÃÂsticos, contrapartida dos direitos de liberdade de expressão e comunicação e materialização do bem cultural intangÃÂvel (forma de expressão). (SOARES, 2008, p. 84) Para além de sua função cultural, a lÃÂngua, para Jünger Habermas (2007, p. 31), é "[...] o mais importante meio de coordenação das ações. JuÃÂzos e posicionamentos morais que se apoiam em normas internalizadas se exprimem numa linguagem carregada de emoções" - de tal forma que a possibilidade de coexistência de múltiplas vozes em um debate público é o que permite a concretização da participação democrática nas sociedades modernas. A inclusão do Outro (e, por consequência, a oitiva de suas lÃÂnguas e vozes) é o que fortalece, para o filósofo, a esfera pública e, assim, as democracias, fazendo-se destacar uma finalidade polÃÂtica atrelada àlinguagem.

    Por tais razões, Luis Felipe Miguel (2014, p. 216) afirma que a polifonia, como essa pluralidade de vozes e de perspectivas incidentes na elaboração de um discurso final, é o que, de fato, viabiliza o modelo deliberativo habermasiano, de sorte que, para o filósofo alemão, a princÃÂpio, "[...] a própria inclusão produziria a legitimidade das decisões e da justiça".

    Logo, além do papel formulador de identidades socioculturais e da possibilidade de veiculação, por si, das cosmovisões correspondentes às diversas culturas de seus emissores, a linguagem pode espelhar, também, os embates de diferentes grupos sociais envolvidos na tarefa de se imporem politicamente sobre os demais, ainda que dentro do conceito de esfera pública e do indissociável aspecto de conflituosidade por vezes presente. Assim, a sobreposição histórica de uma lÃÂngua às outras conduz àhegemonização de um discurso ou, ao menos, de um método que leva àsua construção.

    A definição de uma única lÃÂngua como sendo a padrão ou oficial em sociedades plurais e multiculturais como a brasileira resulta do longo processo de conflituosidade histórica entre os diversos grupos sociais e que, antagonizando-se, hierarquizaram as correlatas lÃÂnguas como certas e erradas para fins de controle polÃÂtico de um grupo por outro. Como exemplo, menciona-se a proibição do nheengatu nas terras brasileiras, em meados do século XVIII, por Sebastião José de Carvalho e Melo (o Marquês de Pombal), ao iniciar uma série de reformas para regeneração econômica da antiga metrópole do Brasil. Segundo determinações de seu "Directório que se deve observar nas povoações dos ÃÂndios do Pará e Maranhão", datado de 3 de maio de 1757 (estendido a todo o Brasil, por força do Alvará de 17 de agosto de 1758), a abolição do nheengatu, como lÃÂngua-geral falada entre colonizadores e indÃÂgenas, e a obrigatoriedade do uso da lÃÂngua portuguesa atenderiam ao propósito de formação de uma única nação, subserviente àCoroa (MAXWELL, 1996, p. 139).

    Na contemporaneidade, a disputa por uma única lÃÂngua não arrefeceu: antes, constitui parte estratégica da influência cultural no contexto geopolÃÂtico (como instrumento a serviço de um soft power), além de garantir uma renovação do projeto de colonialidade e de violência epistêmica que mantêm as hierarquizações historicamente consolidadas em cada sociedade. Logo, "[e]mbora estas estruturas tenham sido desintegradas, com o final do colonialismo enquanto sistema, elas abriram espaço ao surgimento de relações de colonialidade cultural, mais duradouras e de caráter simbólico, perpetuando a dominação colonial [...]." (MARTINS; SILVA; COELHO, 2020, p. 24)

    Portanto, como ensina Tomaz Tadeu da Silva (2014, p. 76),

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