Do cercamento das terras comuns ao Estatuto da Cidade: a colonialidade do direito de propriedade como obstáculo para a efetivação do direito à cidade no Brasil

AutorBetânia de Moraes Alfonsin, Flávia Segat, Juliana Raffaela de Souza Gallicchio, Vitória Montanari
CargoFundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Páginas294-330
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Rev. Dir. Cid., Rio de Janeiro, Vol. 15, N.01., 2023, p. 294-330.
Betânia de Moraes Alfonsin, Flá via Segat, Juliana Raffaela de Souza
Gallicchio e Vitória Montanari
DOI: 10.12957/rdc.2023.64045 | ISSN 2317-7721
DO CERCAMENTO DAS TERRAS COMUNS AO ESTATUTO DA CIDADE: A COLONIALIDADE DO
DIREITO DE PROPRIEDADE COMO OBSTÁCULO PARA A EFETIVAÇÃO DO DIREITO À CIDADE
NO BRASIL
From the enclosure of common lands to the City Statute: the coloniality of property rights as an obstacle
to the realization of the right to the city in Brazil
Betânia de Moraes Alfonsin
Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2759534639224252 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5213-6212
E-mail: betaniaalfonsin@gmail.com
Flávia Segat
Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0398114625941081 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9847-8373
E-mail: flaviasegat@gmail.com
Juliana Raffaela de Souza Gallicchio
Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6172391441072076 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4933-1420
E-mail: jgallicchio3@gmail.com
Vitória Montanari
Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4036701645114871 ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4111-0893
E-mail: montanarivit@gmail.com
Trabalho enviado em 01 de fevereiro de 2021 e aceito em 29 de março de2022
This work is licensed under a Creative Commons Attribution 4.0 International License.
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Rev. Dir. Cid., Rio de Janeiro, Vol. 15, N.01., 2023, p. 294-330.
Betânia de Moraes Alfonsin, Flá via Segat, Juliana Raffaela de Souza
Gallicchio e Vitória Montanari
DOI: 10.12957/rdc.2023.64045 | ISSN 2317-7721
Resumo
Completados vinte anos do Estatuto da Cidade, o pr esente artigo pretende discutir em que medida o
estatuto jurídico do direito de propriedade apesar de alterado pela Lei nº 10.257/01, mas mantido,
em essência, como centro da ordem urbanística representou um entrave para o cumprimento das
funções sociais da cidade e para a efetivação do direito à cidade. A análise se debruça sobre como o
direito de propriedade se faz presente na lei, por meio do exame (i) da função social da pr opriedade,
(ii) dos instrumentos de combate à retenção especulativa de imóveis, (iii) do instituto do plano diretor
e (iv) da usucapião urbana especial para fins de moradia. O método de abordagem é dialético e o
método de procedimento é histórico, já que a reconstituição da forma pela qual a propriedade foi
introduzida no Brasil é realizada para demonstrar que a resiliência de tal instituto, mesmo em uma lei
como o Estatuto da Cidade, é uma manifestação da colonialidade do poder. Em um exercício
propositivo de alternativas para uma saída dessa armadilha jurídica e epistêmica, a pesquisa realizada
analisa as discussões sobre os comuns, sobre função social da posse, sobre o termo territorial coletivo
e sobre as potencialidades das ZEIS.
Palavras-chave: Estatuto da Cidade. Direit o de propriedade. Direito à cidade. Função social da
propriedade. Colonialidade.
Abstract
After the City Statute turns twenty years old, this article discusses in what extent the legal status of
the property right, despite being altered by law 10.257/01 but maintained, in essence, as the center
of the urban order represented an obstacle to fulfill the social functions of the city and for the
realization of the right to the city. The analysis focuses on how the right to property is present in the
law by examining (i) the social function of property, (ii) the instruments to combat the speculative
retention of idle properties, (iii) the institute of master plan and (iv) special urban usucapio for housing
purposes. The method of approach is dialectical and the method of procedure is historical, as a
reconstitution of the way how property was introduced in Brazil is carried out to demonstrate that the
resilience of property, even in a law s uch as the City Statute, it is a manifestation of th e coloniality of
power. In a propositional exercise of alternatives for a way out of this legal and epistemic trap, the
investigation focuses on discussions about the commons, the social function of property, the
Community land trust and on the potential of ZEIS.
Keywords: City Statute. Property rights. Right to the city. Social function of property. Coloniality.
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Rev. Dir. Cid., Rio de Janeiro, Vol. 15, N.01., 2023, p. 294-330.
Betânia de Moraes Alfonsin, Flá via Segat, Juliana Raffaela de Souza
Gallicchio e Vitória Montanari
DOI: 10.12957/rdc.2023.64045 | ISSN 2317-7721
1 Introdução
No ano em que o Estatuto da Cidade completa vinte anos, inúmeras avaliações começam a ser
produzidas acerca dos resultados atingidos pela Lei Federal de Desenvolvimento Urbano. Em que pese
o reconhecimento de muitas das contribuições da lei como a introdução do direito à cidade na cena
jurídica brasileira a maior parte dos balanços tem sido negativo1, apontando a baixa efetividade de
muitos de seus instrumentos e, sobretudo, a p ersistência de um espaço urbano altamente
hierarquizado e marcado por profundas desigualdades no acesso aos bens materiais e simbólicos que
traduzem a ideia de cidade. O fato de a paisagem urbana não ter tido grandes alt erações após duas
décadas de implementação da lei e de ser ainda caracterizada pela produção irregular de parte do
tecido urbano demonstra, segundo tais avaliações, que o direito à cidade não conseguiu avançar entre
nós.
O presente artigo procura interrogar, mais do que os resultados da aplicação do Estatuto da
Cidade, as fórmulas nas quais apostamos, enquanto sociedade, tanto no momento da negociação
política em torno do capítulo da Política Urbana quanto no momento da regulamentação, no Estatuto
da Cidade, do que sobrou da mutilada emenda da reforma urbana no texto constitucional. Esse texto
registra um esforço do estudo realizado em 2021, muito especialmente para procurar responder a dois
problemas de pesquisa articulados entre si:
a. Em que medida a colonialidade do poder2 se alavancou, juridicamente, na história do Brasil, sobre
o direito de propriedade como instituto garantidor do poder econômico, da desigualdade social e
da exclusão política da população de baixa renda?
1 Ver, a propósito, balanços reunidos em: ALFONSIN, Betânia de Moraes et. al., 2021.
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e em outras regiões do planeta como o continente africando, que foram vítimas da violência do empreendimento
colonial i nstaurado, por países europeus, a partir do século XV. A coloniali dade do poder corresponde a um
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ciência produzida na Europa, o gênero masculino, o padrão sexual heteronormativo e a raça ariana como
hierarquicamente superiores em relação aos conhecimentos produzidos por povos originários da América Latina
e da África (produzindo o epistemicídio), ao gênero feminino (reproduzindo o machismo), ao padrão sexual
LGBTQIA+ (gerando a homofobia) e às raças de pessoas não brancas (legitimando o racismo), respectivamente.
É o pró prio padrão colonial de poder que inventa o conceito de raça e, consequentemente, o racismo, já que
toda a humanidade pertence à raça humana. Para esta pesquisa, assume -se que o direito de propriedade, tal
como introduzido no Brasil, foi vítima desta matriz colonial do poder, desprezando outras formas de acesso à
terra praticados pelos povos originários que poderiam ter conduzido o país a uma outra matriz jurídica mais
potente para a garantia do direito de moradia e do direito à cidade.

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