Do incidente de arguição de inconstitucionalidade

AutorManoel Antonio Teixeira Filho
Páginas47-74
Cadernos de Processo do Trabalho n. 21 – Da Ordem dos Processos
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Capítulo IV
Do incidente de arguição de
inconstitucionalidade
1. Escorço histórico
Embora seja possível identicar-se no Instrument of Government inglês (que
se opunha à tendência expansionista de Jaime I) e na doutrina de Coke a origem
moderna da ideação de atribuir-se ao Poder Judiciário competência privativa
para exercer o controle da constitucionalidade, não há negar que já ao tempo
das Ordenações reinóis portuguesas essa competência judiciária se encontrava
prevista, ainda que de maneira algo embrionária.
Com efeito, os textos legais do período revelam a preocupação do legislador
lusitano em exaltar a supremacia das Ordenações em face dos editos municipais,
sempre que houvesse, ou pudesse haver, colisão destes com aquela. Vericado
esse antagonismo, competia ao Corregedor declarar a nulidade da norma inferior
(municipal), que era, por isso mesmo, considerada írrita, nenhuma.
Mencionemos, como exemplo, o que dispunham as Ordenações Filipinas,
no Livro I, Título 58, n. 17: “Informar-se-á ex ocio, se há nas Câmaras algumas
posturas municipais prejudiciais ao povo e ao bem comum, posto que sejão feitas
com a solenidade devida, e nos escreverá sôbre elas com seu parecer. E achando
que não forão feitas, guardada a forma de nossas Ordenações, as declarará por
nulas e mandará que se não guardem” (mantivemos a graa original).
Essa disposição das Ordenações Filipinas, a propósito, motivou o Prof.
Alfredo Buzaid (Da ação direta de declaração de inconstitucionalidade no direito
brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1958. p. 20) a destacar duas ideias expressivas,
que foram intuídas pelo legislador português da época: a) a existência de uma
ordem hierárquica de normas legais, de sorte que a inferior deveria submeter-
-se à autoridade (ou preeminência) da superior; b) a atribuição de competência
a um órgão judiciário para declarar a nulidade de lei que fosse incompatível
com as Ordenações.
Em outras legislações priscas também se podia vericar, com maior ou me-
nor intensidade, a presença do princípio segundo o qual à norma que estivesse
colocada no ápice da pirâmide legal deveriam sujeitar-se as demais, sob pena de
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serem declaradas nulas: tal era o primado da hierarquização das normas legais,
consagrado naqueles tempos e que foi legado aos tempos modernos.
Mal se havia iniciado o século XIX, contudo, quando advém um fato de
extraordinária importância para a consolidação do princípio da supremacia da
lei apical, superior, relativamente à secundárias. Referimo-nos ao famoso caso
entre Marbury e Madison, que foi decidido pela Suprema Corte norte-americana
em 1803, sendo oportuno ressaltar, como registro histórico, que esse tribunal foi
criado em 1792.
Esse caso originou-se do seguinte fato: o Presidente Adams nomeou
Marbury para o cargo de Juiz de Paz no Distrito de Colúmbia. Quando Jef-
ferson, o novo Presidente, assumiu, aquela designação de Marbury, embora
estivesse assinada, não se encontrava formalmente efetivada. Ciente disso,
Jeerson determinou a Madison, Secretário de Estado, que sustasse a no-
meação. Inconformado com a medida, Marbury requereu à Suprema Corte
uma ordem para que Madison o nomeasse. O pedido de Marbury calcou-se
na Secção 13, da Lei Judiciária de 1789, conforme a qual aquele tribunal estaria
autorizado a conceder mandado de segurança a pessoas que ocupassem car-
go sob a jurisdição dos Estados Unidos. O juiz Marshall, contudo, argumentou
que a Constituição havia xado especialmente a jurisdição original da Suprema
Corte, na qual não se incluía o poder de expedir ordem (mandamus) àqueles
que ocupassem cargos federais, advertindo, ainda, que o Congresso não tinha
poderes para modicar essa jurisdição. Disto decorre a sua conclusão de que o
objetivo do Congresso em conceder, por meio da Lei Judiciária de 1789, poder
à Corte para expedir mandado de segurança contra os ocupantes de cargos da
administração pública federal, parecia não estar amparado pela Constituição.
Em razão disso, parte da mencionada Lei foi declarada nula, consagrando-se,
assim, o pensamento de Marshall no sentido de que o Judiciário poderia de-
clarar a inconstitucionalidade de atos oriundos do Congresso. Em certo trecho
de seu notável e histórico voto, disse Marshall: “(...) a fraseologia particular da
Constituição dos Estados Unidos conrma e corrobora o princípio essencial a
todas as Constituições escritas, segundo o qual é nula qualquer lei incompatível
com a Constituição; e que os Tribunais, bem como os demais departamentos,
são vinculados por esse instrumento” (The constitutional decisons of John Marshall.
v. 1. New York: Da Capo Press. 1971. p. 43).
Como bem ressaltou, mais tarde, Hamilton (O federalista. LXXVIII, Rio de
Janeiro: Nacional de Direito, 1959. p. 131/134), nenhum ato legislativo contrário
à Constituição pode prosperar, motivo por que os tribunais foram criados como
uma espécie de corpo intermediário entre o povo e a legislatura, com a nali-
dade, dentre outras coisas, de manter esta última dentro dos limites atribuídos
à sua autoridade. Nesse contexto, surge a interpretação como uma peculiar in-
cumbência dos tribunais, concluindo que “Deverá ser preferida a Constituição à
lei ordinária, a intenção do povo à intenção de seus mandatários. Esta conclusão
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