O bem humano como elemento motivador da (re) significação do conceito de direito

AutorWilson Engelmann
CargoDoutor e Mestre em Direito pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos (São Leopoldo-RS); Especialista em Direito Político (Unisinos)
Páginas357-377

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Considerações iniciais

O Direito, tanto na sua concepção conceitual quanto na aplicação aos fatos da vida, sempre deve estar preocupado com a pessoa, a sua dignidade e o respeito aos aspectos mínimos que proporcionam uma existência condizente com o gênero humano. Não se pensa em regrar a utilização de uma máquina, de um prédio ou de um animal. As normas jurídicas, como normas preocupadas com o agir humano, deverão estar em sintonia com esse conteúdo. Ele dá o suporte de legitimidade para a sua obrigatoriedade. É no resgate desse aspecto substancial que será elaborada o presente texto. Busca-se destacar a importância desse retorno, como um modo de criticar a postura do positivismo jurídico, onde a forma é mais importante do que o conteúdo.

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1 A noção do bem e suas aproximações com a razão prática

Dentro desse contexto, o ponto de partida é a noção do bem, a qual foi construída a partir de Aristóteles2 . Assim sendo, não se pode esquecer que o homem sempre atua tendo algo em vista, “pelo menos o homem razoável, e este algo é o limite, pois o fim é um limite”3 . É por isso que a ética de Aristóteles parte do pressuposto de que em todo ser humano existe um fim, tal característica justifica a própria existência humana. Para a identificação desse “fim” poderão ser apontadas três razões: 1) pela identificação do fim acaba-se fazendo opções, apontando claramente que o fim é suficiente para a sua obtenção, em detrimento de outras coisas; 2) na busca dos fins, o ser humano faz opções, de tal modo que “um fim pode ser desejado em razão de outro fim. Logo, há que chegar a algum fim que não é desejado por outro, ou não”4 ; 3) a seleção dos fins que o ser humano almeja não poderá ser projetada ao infinito. Dessa forma, “é necessário que exista algum fim último pelo qual todos os demais sejam desejados e ele mesmo não seja desejado em razão de outro. Assim, é necessário que exista algum fim ótimo dos assuntos humanos”.5 Dessa forma, fica sublinhada a finitude humana (Heidegger), a saber, a existência da pessoa é limitada temporalmente.

Esse cenário é especificado por Aristóteles quando enfatiza que toda ação, portanto toda a intervenção da prática (humana), visa determinado bem. No caso, o bem supremo buscado pela maioria dos homens é a felicidade, ou seja, “viver bem e ir bem equivale a ser feliz”6 , que corresponde à eudaimonia. O mencionado fim deve ser buscado pela pessoa, ou seja, a sua atuação prática (racional) estará canalizada para a concretização desse objetivo, a saber, “a causa final ou o bem (pois este é o fim de qualquer geração ou movimento)”.7 O desenvolvimento dessa vida feliz depende da observância e do cultivo de algumas virtudes8 . A busca do bem é o elemento motivador que sustenta a unidade do comportamento humano9 . É por isso que Aristóteles, logo início da Ética a Nicômaco, refere: “o bem é aquilo a que todas as coisas visam”.10

A noção de bem – construída a partir de Aristóteles, que parece ser algo tão simples, mas efetivamente têm-se dificuldades para a sua implementação na prática – deverá ser o verdadeiro fim buscado pelo Direito. A felicidade como o maior bem humano precisa ser cultivado, a saber, é necessário viver bem. Dito dePage 359outro modo, esse ‘viver bem’ é uma característica predominantemente humana. Esse parece ser o objetivo do estudo do Direito, o qual poderá ser um caminho para os humanos atingirem aquela finalidade. Não se pode esquecer “que o homem feliz vive bem e se conduz bem, pois praticamente definimos a felicidade como uma forma de viver bem e conduzir-se bem”.11 Fica evidente uma aproximação com a moral na condução de cada ser humano, pois a conduta boa é aquela moralmente amparada em determinados valores, considerados relevantes, como a busca da verdade para a implementação da felicidade. Aqui se aponta para uma necessária conexão entre o Direito e a Moral, contrapondo-se à secularização do Direito – marca característica do positivismo jurídico.12

A ética aristotélica demonstra uma concepção teleológica onde o fim da vida humana não depende da vontade do sujeito, mas já está previamente dado: “[...] não é meramente a pólis, mas o próprio kósmos, a própria ordem das coisas, que fornece o contexto no qual a justiça e a razoabilidade prática13 estão relacionadas”.14 Isso indica que o homem não delibera sobre os fins, pois já está delineado um telos objetivo do homem que aponta para o bem moral. Dito de outra maneira, ao estudar-se a deliberação, fica evidenciado que é necessário pressupor o fim, ou seja, a preocupação deverá estar centrada no modo como os fins poderão ser alcançados15 . A objetividade assim delineada é uma das notas características da ética clássica. Um estudo comparativo entre a ética moderna e a ética clássica aponta para a seguinte linha característica:

a ética moderna é, assim, uma ética constitutivamente autonômica ao fazer do sujeito, em última instância, o legislador moral, em contraste com a ética clássica, essencialmente ontonômica, pois nela o ser objetivo, mediatizado pela ‘reta razão’ (orthòs lógos), é a fonte da moralidade16.

Não se procura, com a passagem, aprofundar a discussão, mas a proposta é mostrar que na ética clássica, movida por um fim dado pela própria natureza das coisas, a pessoa deveria desenvolver os meios para alcançar determinado fim. Já a ética moderna, especialmente a partir da autonomia que o ser humano adquire em relação à natureza, caracteriza-se pela forma autônoma da construção dos meios e dos fins. Assim, o ser humano passa a ser ‘legislador’ daquilo que realmente é considerado importante. Sem se inclinar por nenhuma dessas duas formas de organização da ética, o ser humano ainda continua motivado pela busca do bem.

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Essa busca ainda é a conquista da felicidade. Para tanto, falar-se-á, daqui para frente, em bens humanos. O contexto que organiza as idéias não está vinculado nem na perspectiva da ética clássica e nem naquela defendida pela ética moderna. Procura-se desenvolver uma argumentação, onde o Direito está inserido, que vise conciliar o objetivismo aristotélico e o subjetivismo da modernidade, especialmente desenvolvido a partir de Kant (quando o sujeito passou a ser mais importante que o objeto).

Para a caracterização do bem, é interessante observar a concepção trazida por São Tomás de Aquino17 : “bem é o que todos desejam”. A partir desse aspecto, formula-se o primeiro preceito da razão prática “deve-se fazer e buscar o bem e evitar o mal”.18 Quando é referida a ‘razão prática’, tem-se como ponto de vista a razão, o modo de proceder, de agir. Assim, segundo São Tomás de Aquino, a busca do bem integra o ponto de partida da razão prática, que é própria do agir humano, essencialmente contingente. Nesse particular, encontra-se a raiz da apreensão dos bens humanos, mostrando claramente os contornos da lei natural, que indica o que deve ser feito e aquilo que deve ser evitado. Tudo indica que a apresentação desse princípio da razão prática traga a noção de autoridade. Entretanto, não deverá ser encarada dessa forma, pois a lei natural acima apresentada apenas representa um preceito, baseado na natureza humana, ou seja, a razão humana é uma lei que pertence à razão.19

Não se pode esquecer que, segundo Tomás de Aquino, “a lei é a ordenação da razão para o bem comum”20 . Dentro da diversidade das leis apresentadas por Tomás de Aquino, encontra-se a lei eterna, a lei natural, a lei humana e a lei divina. A razão prática viabiliza a participação do homem em cada uma delas, dentro de determinados limites e a partir de princípios comuns, como aquele que visa à busca do bem. A própria lei humana deve ser elabora a partir desse guia, considerando que toda lei representa um preceito geral.21 Com o auxílio da razão prática, o homem consegue realizar o conteúdo do preceito da lei natural que o impulsiona ao bem. Esse objetivo não está alicerçado em pressupostos permanentes, mas conjugados com o agir mutável, próprio da categoria humana.

É interessante destacar que, segundo Tomás de Aquino, a busca pelo bem é algo auto-evidente, pois esse princípio da lei natural serve como fundamento Page 361para a concepção inicial acerca da razão prática, servindo como um meio termo entre o sujeito e o predicado. Vale dizer, é desse princípio que são derivados os demais princípios que sustentam a racionalidade humana, especialmente vinculado com a inteligência humana, a qual não pode ser desconhecida.22 Isso faz sentido na medida em que a razão prática é um princípio para a ação que versa sobre todos os atos, que se apresentam como particulares e contingentes, envolvendo as obras humanas. Com tal contorno, na ordenação das ações, não há a mesma verdade ou retidão prática em todos, quanto ao particular, mas só, quanto aos princípios gerais. (...) a verdade ou a retidão das conclusões particulares da razão prática não é a mesma para todos, nem para os quais o é, é igualmente conhecida. Assim, todos têm como reto e verdadeiro que devem agir segundo a razão.23

No contexto da auto-evidência do referido princípio da lei natural, podese dizer que todos conhecem esse ponto de partida, mas a sua aplicação prática, em cada situação concreta, varia e nem sempre leva à mesma conclusão. Essa é a característica apresentada por São Tomás de Aquino, todos conhecem a noção de bem, eis que todo ser humano, sendo racional, pode acessá-la. Entretanto, a sua aplicação prática depende de pessoa para pessoa e de situação para situação, aí, pois, o contorno da contingência do gênero humano.

Por tais aspectos, verificar-se-á que o Direito não trabalha com a razão teórica, pois ela opera com o...

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