Em nome da saúde pública o misoprostol e a nova criminalização do aborto no Brasil

AutorMariana Prandini Assis, Joanna N. Erdman; Lílian Ponzo Ribeiro
CargoProfessora Adjunta de Ciência Política da Universidade Federal de Goiás/Professor of Law e MacBain Chair in Health Law and Policy na Schulich School of Law, Dalhousie University (Canadá)/Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais
1
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 15, N. 1, 2024, p.01-36.
Copyright © 2023 Mariana Prandini Assis e Joanna N. Erdman
https://doi.org/10.1590/2179-8966/2023/71712 | ISSN: 2179-8966 | e71712
[Traduções]
Em nome da saúde pública: o misoprostol e a nova
criminalização do aborto no Brasil
In the name of public health: misoprostol and the new criminalization of abortion
in Brazil
Mariana Prandini Assis¹
¹ Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Goiás, Brasil. E-mail: m ariana.prandini@ufg.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5566-2613.
Joanna N. Erdman²
² Dalhousie University, Halifax, Nova Escócia, Canadá. E-mail: joanna.erdman@dal.ca.
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3578-8523.
Versão original:
ASSIS, M.P., ERDMAN, J.N., In the name of public health: misoprostol and the new
criminalization of abortion in Brazil, Journal of Law and the Biosciences, 8, 1, lsab009
(2021). DOI: 10.1093/jlb/lsab009.
Tradução recebida em 10/12/2022 e aceita em 25/02/2023.
Este é um artigo em acesso aberto distribuído nos termos da Licença Creative Commons Atribuição
4.0 Internacional.
2
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 15, N. 1, 2024, p.01-36.
Copyright © 2023 Mariana Prandini Assis e Joanna N. Erdman
https://doi.org/10.1590/2179-8966/2023/71712 | ISSN: 2179-8966 | e71712
Resumo
Este artigo explora a regulamentação criminal do misoprostol como medicamento
controlado no Brasil, como uma nova forma de criminalização do aborto. Uma análise
qualitativa da jurisprudência brasileira mostra como os tribunais utilizam uma retórica de
saúde pública sobre o aborto inseguro para criminalizar a distribuição do misoprostol no
setor informal. Em vez de uma invenção do judiciário local, esta retórica judicial reflete o
discurso e a política global de saúde pública sobre o aborto inseguro e a dupla vida do
misoprostol como um medicamento essencial e uma droga controlada. Em contraste com
estudos anteriores, o artigo mostra que a criminalização do aborto não é a causa, mas a
consequência da vida dupla do misoprostol. Na última seção, o artigo se baseia em um
julgamento isolado encontrado na jurisprudência para traçar um futuro regulatório para
o misoprostol e seu fornecimento no setor informal como política de redução de danos e
promoção do aborto seguro no campo da saúde pública.
Palavras-chave: Aborto; Controle de drogas; Misoprostol; Nova criminalização; Saúde
pública.
Abstract
This article explores the criminal regulation of misoprostol as a controlled drug in Brazil
as a new form of abortion criminalization. A qualitative analysis of Brazilian case l aw
shows how the courts use a public health rhetoric of unsafe abortion to criminalize the
distribution of misoprostol in the informal sector. Rather than an invention of the local
bench, this judicial rhetoric reflects global public health discourse and po licy on unsafe
abortion and the double life of misoprostol as both an essential medicine and a controlled
drug. In contrast to previous studies, the article shows that abortion criminalization is not
the cause, but rather the consequence o f misoprostol’s double life. In the last section, it
draws on an outlier judgment of the case law to chart a regulatory future for misoprostol
and its supply in the informal sector as a site of harm reduction and safe abortion in public
health policy.
Keywords: Abortion; Drug control; Misoprostol; New criminalization; Public health.
3
Rev. Direito e Práx., Rio de Janeiro, Vol. 15, N. 1, 2024, p.01-36.
Copyright © 2023 Mariana Prandini Assis e Joanna N. Erdman
https://doi.org/10.1590/2179-8966/2023/71712 | ISSN: 2179-8966 | e71712
I. Introdução1
Na década de 1990, pesquisadoras e pesquisadores brasileiros estiveram entre o s
primeiros a documentar o uso informal do misoprostol como uma medida de redução de
danos (KLITSCH, 1 991; BARBOSA; ARILHA, 1993; COÊLHO et al., 1994; COSTA, 1998).
Contraindicado para o uso na gravidez, mas amplamente conhecido boca a boca, as
mulheres brasileiras, com o apoio de profissionais de saúde, usaram o medicamento de
forma criativa para fazer abortos mais seguros em um ambiente legal altamente restritivo
(ARILHA; LAPA; PISANESCHI, 2010). O Brasil é creditado como o local de nascimento do
aborto autogestionado ou seja, a aquisição de remédios abortivos e seu uso para
interromper uma gravidez fora dos sistemas formais de saúde, ou no setor informal2 -
hoje, uma prática mundial (ERDMAN; JELINSKA; YANOW, 2018; ASSIS; LARREA, 2020;
MOSESON et al., 2020). Este conhecimento experiencial circulou de casas e ruas para
laboratórios e hospitais em todo o mundo, levando mais tarde à confirmação científica
das propriedades abortivas do misoprostol. Formulado como um comprimido,
termoestável e com uma vida útil de v ários anos, o misoprostol provoca cólicas e
sangramentos semelhantes à menstruação intensa ou ao aborto espontâneo no início da
gestação.
Muitas das mulheres da classe trabalhadora identificadas como primeiras
usuárias do misoprostol no nordeste do Brasil não associavam o medicamento ao aborto,
mas o usavam como uma medida preventiva contra o risco de gravidez (NATIONS et al.,
1997). Como tal, o consumo do medicamento tinha o propósito de regular a menstruação,
ou seja, "reequilibrar o corpo, liberar sangue coalhado e iniciar a menstruação sem o
julgamento moral associado [...] ao aborto" (NATIONS et al., 1997, p. 1842).
Pesquisadoras documentaram um uso semelhante do misoprostol nos dias de hoje entre
as comunidades da classe trabalhadora peruana, onde o medicamento vive sua vida social
1 As autoras agradecem à Leticia Ueda e à Carla Vitória por sua ajuda na coleta e organização da jurisprudência
discutida neste artigo.
2 Os termos setor "formal" e "informal" distinguem entre um conjunto de atores, mercados e setores no uso
e fornecimento de misoprostol. O "setor formal" geralmente se refere a um co njunto de atores e arranjos
que são oficialmente autorizados a usar e fornecer misoprostol por uma política estatal escrita, e que
normalmente estão confinados ao sistema formal de saúde. O "setor informal", por sua vez, refere-se ao uso
e fornecimento de misoprostol, e atividades relacionadas, que não têm a autorização explícita do Estado e
podem até ser proibidas por ele, mas gozam de algum grau de legitimidade em virtude da prática e aceitação
social (LAUTH, 2015). O termo "aborto no setor informal" é amplamente utilizado na área, e geralmente se
refere a atividades relativas ao aborto realizadas fora do sistema formal de saúde (CHEMLAL; RUSSO, 2019).

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT