Equiparação salarial: novos e velhos dilemas

AutorRenata Orsi Bulgueroni
Páginas121-127

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Renata Orsi Bulgueroni 1

Introducáo

A equiparacao salarial é corolário do princípio constitucional da isonomia (art. 5º, caput, e art. 7º, XXX, da Constituicao Federal de 1988 - CF/88), afinal, por ób-vio, nao seria admissível que trabalhadores em condicóes equanimes percebessem salários diferenciados, por mero capricho do empregador. Trata-se, pois, de garantia destinada ao legislador infraconstitucional (que nao poderia criar uma lei com diferenciacóes salariais injustificadas) e ao empregador (que deve assegurar salário igual a todo trabalho de igual valor).

Em ambito internacional, a matéria é disciplinada nas Convencóes n. 100 e n. 111 da Organizacao Internacional do Trabalho - OIT (ambas ratificadas pelo Brasil). A Con-vencao n. 111, aliás, foi eleita, na Conferencia de 1998, como uma das mais importantes da Organizacao, de observancia obrigatória a qualquer país que venha a dela se tornar membro, independentemente de ratificacao. Consi-dera-se, dessa maneira, a igualdade salarial como um dos direitos fundamentais do trabalhador (assim como a liber-dade sindical, a negociacao coletiva plena e a tutela do trabalho da mulher, da crianca e do adolescente).

Em ambito interno, a equiparacao salarial é consagrada pelo art. 461 da Consolidacao das Leis do Trabalho - CLT, que veio a sofrer profundas alteracóes com a Lei n.13.467/17 (popularmente conhecida como "Reforma Trabalhista"). Para estudo do tema, ainda, mostra-se tam-bém imprescindível a análise da Súmula n. 6 do Tribunal Superior do Trabalho - TST, a qual deve sofrer alteracóes em face da Reforma, mas provavelmente será mantida intacta em muitas de suas previsóes.

O estudo da equiparacao salarial passa, primeiramente, pela identificacao dos requisitos para sua caracterizacao. Após, imprescindível se faz a análise das causas excluden-tes á isonomia salarial para, só entao, apresentarem-se os questionamentos que a cercam, especialmente em demandas judicias. Esse é, portanto, o iter que o presente artigo se propóe a seguir.

Requisitos da equiparacáo salarial

A despeito de concretizar o ideal isonomico contido na Constituicao Federal de 1988, a equiparacao salarial deve

ser interpretada com cautela, sob pena de comprometer a própria atividade empresarial pelo engessamento de políticas remuneratórias.

Atento a isso, o legislador pacificou, no art. 461 da CLT, requisitos para a equiparacao entre reclamante (também chamado "paragonado") e paradigma — ou, simplesmente, "identidades" que devem existir no caso concreto, a justificar a isonomia. Algumas dessas identidades permaneceram intactas com a Reforma Trabalhista (Lei n. 13.467/17); ou-tras, por seu turno, sofreram profunda alteracao; alteracao que, no entender de Homero Matheus Batista da Silva, de-monstrou clara intencao do legislador reformista em "restringir drasticamente a concessao dessa diferenca salarial em sede de processo judicial trabalhista".2

Como primeiro requisito, destaca-se a identidade de funcóes — afinal, por óbvio, reclamante e paradigma ne-cessitam exercer identicas funcóes para que seja justificada a igualdade salarial.

A esse respeito, a doutrina trabalhista aponta para distin-cao conceitual entre "funcao" e "tarefa" ou "atribuicao". Segundo Mauricio Godinho Delgado, de fato, "tarefa" consiste em uma atividade específica desempenhada pelo trabalhador (ou seja, uma atribuicao singular no contexto da prestacao de servicos), enquanto funcao representa a reuniao coordenada de um conjunto de tarefas (em outras palavras, um todo unitário).3 Sob esse viés, é possível que uma funcao, teoricamente, englobe uma única tarefa (em-bora pouco comum), bem como que uma tarefa encon-tre-se compreendida dentro de diversas funcóes (situacao extremamente frequente no contexto laboral).

Ao exigir a identidade de funqóes para a equiparacao salarial, a CLT deixa claro, portanto, que todas as tarefas desempenhadas por paradigma e reclamante devem ser identicas, sob pena de afastar-se a justificativa para a iso-nomia. O fato de o paradigma exercer uma única tarefa a mais do que o paradigma, assim, é suficiente, em tese, para a improcedencia do pleito.

A Reforma Trabalhista nada muda em relacao a tal requisito — razao pela qual as observacóes acima expendidas mostram-se, ainda, pertinentes ao estudo da equiparacao. Também se mantém inalterado, de outra parte, o entendimento consubstanciado na Súmula 6, III,

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do TST, no sentido de que o nome do cargo é irrelevante para a verificacao do requisito em comento.

Também, nenhuma modificacao expressa é efetuada quan-to ao segundo requisito: a identidade de empregador.

Mais uma vez, soa óbvia a ideia de que empregados de empregadores diferentes nao necessitem ganhar o mesmo salário, até pela lógica que domina o sistema capitalista de mercado. Porém, a simplicidade do presente requisito é apenas aparente: quando analisadas questóes envolvendo trabalhadores temporários, terceirizacao, grupo económico, sucessao de empresas etc. é que aparecem os verdadeiros problemas práticos em matéria de identida-de de empregador.

A Reforma Trabalhista foi responsável pela alteracao de diversos dos conceitos acima mencionados — o que, indire-tamente, poderá afetar os pleitos de equiparacao salarial. A delicadeza da matéria, porém, exige análise mais deta-lhada dos temas, que será feita a seguir; por ora, basta ressaltar que remanesce o requisito da identidade de em-pregador para a isonomia.

Outro requisito que permaneceu inalterado com a Lei n. 13.467/17 foi a identidade quantitativa e quali-tativa, expressada pela fórmula legal "com igual pro-dutividade e com a mesma perfeicao técnica" (art. 461, §1º, CLT).

Mais uma vez, a aparente simplicidade de tal critério esconde problemas práticos que, talvez, poderiam ter sensibilizado o legislador reformista. Por exemplo, as difi-culdades de afericao da identidade qualitativa quando se trata de trabalho intelectual: por muito tempo, entendeu--se impossível a equiparacao de tais profissóes, por serem considerados elementos como capacidade intelectual, di-ferencas culturais etc.; porém, o TST passou a permitir a isonomia, desde que a perfeicao técnica fosse aferida por "critérios objetivos" (Súm. 6, VII) — sem, entretanto, especificar quais seriam esses critérios.

Mais tormentosa, ainda, a equiparacao entre atividades artísticas, "dadas as características intrínsecas e extrínsecas próprias do artista e o aspecto subjetivo que envolve a com-paracao".4 Perdeu-se a oportunidade, certamente, de me-lhor regulamentar a questao, evitando-se as tormentosas discussóes que tal critério suscita em demandas judiciais.

Os últimos dois requisitos para a equiparacao salarial, por seu turno, sofreram profunda alteracao com a Reforma Trabalhista: identidade de local e identidade de tempo de servico e de empresa.

Quanto á identidade de local, a despeito de a CLT nao especificar o que se consideraria como "mesma localida-de" de prestacao de servicos, tal tarefa coube ao Tribunal Superior do Trabalho — o qual, na Súmula n. 6, X, pacifi-cou que se deveria entender por "mesma localidade", em princípio, o mesmo Município, ou Municípios pertencentes á mesma Regiao Metropolitana.

Permitia-se, assim, que empregados que trabalhassem em estabelecimentos diferentes, e até mesmo em cidades diferentes (desde que pertencentes á mesma Regiao Metropolitana), lograssem exito em pleitos equiparatórios. Ademais, a utilizacao da locucao "em princípio" era emblemática, demonstrando que o critério estabelecido pela Súmula nao era absoluto, sendo perfeitamente possível que, em determinada acao trabalhista, o empregado bus-casse equiparacao com colega de outro Município (desde que demonstrasse a identidade de custo de vida, por exemplo), ou, em contestacao, o empregador apontasse a diferenca existente entre bairros de uma mesma cidade, para afastar o pleito.

Com a Lei n. 13.467/17, o requisito é completamente alterado: agora, a equiparacao passa a estar atrelada ao mesmo estabelecimento. A discussao, agora, nao mais repousa no que se considera local de trabalho, e sim no que deve ser interpretado como "estabelecimento empresarial".

Parece seguro afirmar que o intuito do legislador reformista foi de considerar o estabelecimento como agencia, filial, sucursal ou planta de trabalho o que, por certo, restringe sobremaneira as possibilidades de equiparacao, garantindo maior liberdade na instituicao da...

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