O Estatuto da Pessoa com Deficiência: questões de direito intertemporal

AutorAntonio dos Reis Junior
Ocupação do AutorDoutorando e Mestre em Direito Civil pela UERJ
Páginas249-287
O Estatuto da Pessoa com Deficiência: questões
de direito intertemporal
Antonio dos Reis Júnior*
1. Introdução: a revolução do modelo de proteção da pessoa com defi-
ciência mental
A chamada Lei Brasileira de Inclusão (Lei n. 13.146/2015) introduziu
profunda alteração no regime jurídico das pessoas portadoras de deficiência
em geral, seja ela física ou psíquica. Recebida com entusiasmo, sobretudo na
questão da ampliação do acesso, do cuidado e da superação dos obstáculos
ao pleno desenvolvimento da personalidade das pessoas com deficiência, o
legislador ultrapassou o âmbito da normativa administrativa e de implemen-
tação de políticas públicas. Em profunda reforma, alcançou o Código Civil,
promovendo verdadeira revolução no modelo do status personae e da pró-
pria capacidade civil.1
Em linhas gerais, a Lei n. 13.146/2015 revogou os incisos I, II e III do
art. 3º do Código Civil, elevando ao caput do dispositivo a única hipótese
agora admitida de incapacidade absoluta: os menores de 16 (dezesseis)
anos. Em contrapartida, reorganizou as hipóteses de incapacidade relativa,
agora restritas aos (i) maiores de dezesseis anos e menores de dezoito; (ii)
ébrios habituais e viciados em tóxicos; (iii) aqueles, que, por causa transi-
* Doutorando e Mestre em Direito Civil pela UERJ. Especialista em Direito Privado
Europeu pela Universidade de Coimbra. Professor de Direito Civil da Faculdade Na-
cional de Direito (UFRJ) e da Universidade Cândido Mendes (UCAM). Professor dos
programas de pós-graduação da PUC-RJ e EMERJ. Associado do IBDCIVIL. Advo-
gado.
1 O termo revolução não é utilizado inadvertidamente. O autor quer exprimir que a
alteração legislativa representou verdadeira ruptura do modelo jurídico de estado da
pessoa e da capacidade anterior, não se apresentando como simples reforma, mas ver-
dadeira revolução.
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tória ou permanente, não poderem exprimir sua vontade; e aos (iv) pródi-
gos.
Este novo modelo, vigente desde o segundo dia de janeiro de 2016,
gerou ao menos três alterações importantíssimas com relação à capacidade
civil da pessoa com deficiência mental: (i) as pessoas que, por causa tran-
sitória ou permanente, não poderem exprimir sua vontade, deixaram de
ser consideradas como absolutamente incapazes para ingressar no rol dos
relativamente incapazes, a demandar apenas a assistência de seu repre-
sentante legal para prática de atos na vida civil; (ii) as pessoas que, por
enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discern-
imento para a prática de atos na vida civil deixaram de ser absolutamente
incapazes para integrarem o conjunto de pessoas capazes civilmente; e (iii)
as pessoas que, por deficiência mental, tiverem discernimento reduzido e
os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo, deixarem de ser
relativamente incapazes, para comporem a totalidade das pessoas capazes
civilmente.
Ainda com relação à revolução promovida no modelo das incapacidades
no Código Civil, não poderia ficar à margem as questões relativas aos atos e
negócios realizados no âmbito do direito de família. Se boa parte das pes-
soas com enfermidade ou deficiência mental já não é mais absolutamente
incapaz, mas simplesmente capaz para praticar os atos da vida civil, (i) já
não há nulidade em casamento por ela contraído, como evidencia a revoga-
ção do inciso I do art. 1.548 do Código Civil, (ii) podendo contrair matri-
mônio livremente, seja por expressa manifestação de vontade própria e di-
reta da pessoa com deficiência, seja por meio de responsável ou curador,
como denota o art. 1.550, §2º, do Código Civil, incluído pela Lei n.
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2 Aqui incide a função primordial e originária da coisa julgada. Nas palavras de En-
rico Tullio Liebman, a essência da coisa julgada consiste “na imutabilidade da sentença,
do seu conteúdo e dos seus efeitos, o que faz dela um ato do poder público portador da
manifestação duradoura da disciplina que a ordem jurídica reconhece como aplicável à
relação sobre a qual se tiver decidido” (Manuale di diritto processuale civile. Vol. II.
Milano: Giuffrè, 1980, n. 394, p. 420).
transitada em julgado, pode ser rescindida quando: (...) VII — obtiver o autor, poste-
riormente ao trânsito em julgado, prova nova cuja existência ignorava ou de que não
pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável (...). Art.
975. O direito à rescisão se extingue em 2 (dois) anos contados do trânsito em julgado
da última decisão proferida no processo. (...) § 2º Se fundada a ação no inciso VII do
art. 966, o termo inicial do prazo será a data de descoberta da prova nova, observado o
prazo máximo de 5 (cinco) anos, contado do trânsito em julgado da última decisão
proferida no processo.
13.146/2015. Ademais, (iii) a descoberta superveniente de enfermidade
mental não pode mais apresentar-se como causa para anulação do casamen-
to por erro essencial sobre a pessoa, conforme a nova redação do inciso III e
Como as pessoas portadoras de deficiência mental, sem o necessário
discernimento para a prática de atos da vida civil (antigo art. 3º, II, do Có-
digo Civil), são agora simplesmente capazes, sucede que não estão mais su-
jeitas à curatela, na forma do art. 1.767 do Código Civil, permanecendo
sujeitos ao procedimento de interdição apenas aqueles que, por causa tran-
sitória ou permanente, não puderam exprimir a vontade. Neste ponto, me-
receu destaque o disposto no art. 1.772, ao prever que “o juiz determinará,
segundo as potencialidades da pessoa, os limites da curatela, circunscritos
às restrições constantes do art. 1.782”, ou seja, limitando-se a curatela a
alguns atos de natureza patrimonial, como sempre ocorreu com a curatela
do pródigo. Contudo, tal dispositivo já foi revogado, pouco mais de dois
meses depois do início de sua vigência, pelo art. 1.072 da Lei n.
13.105/2015 (Novo Código de Processo Civil), que traz disciplina mais de-
talhada da interdição nos artigos 747 a 763, da referida legislação proces-
sual.
Ocorre que aquelas pessoas que não estão sujeitas à curatela na forma
do Código Civil, isto é, as pessoas com deficiência mental sem discer-
nimento ou com discernimento reduzido, conquanto não sejam mais consi-
deradas incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil, ainda assim
podem sujeitar-se à curatela na forma do art. 84 a 87 da Lei n. 13.146/2015.
A curiosa figura da curatela de pessoa capaz, reservada às pessoas com defi-
ciência que apresentem “necessidade” de se submeterem à curatela (art.
84, §1º), deve ser sempre medida extraordinária, proporcional às necessi-
dades e às circunstâncias do caso, com a menor duração de tempo possível
(art. 84, §3º), afetando, igualmente, apenas os atos de natureza patrimonial
e negocial (art. 85, caput), não alcançando atos de índole existencial (art.
85, §1º), em decisão sempre motivada (art. 84, §2º). A regra, portanto, é
que as pessoas com deficiência são plenamente capazes e não precisam de
curadores para agir em seu nome, até que se declare em contrário a presen-
ça de tal necessidade, na forma dos dispositivos dos arts. 84 a 87 da Lei n.
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4 Questão intrigante é aquela relacionada à intervenção do Ministério Público, na
qualidade de custos legis. Na forma do art. 178, II, do CPC/15, o Parquet atuará como
fiscal da ordem jurídica quando houver interesse de incapaz, razão pela qual não have-
ria causa de intervenção nos processos em que pessoas com deficiência mental, mas

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