Estatuto Jurídico-Constitucional do Salário: Considerações a Propósito do art. 19 da Lei n. 55-A/2010

AutorJorge Leite
Páginas275-283

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I Constitucionalização do direito à retribuição
1. Introdução

A Lei n. 55-A/2010, de 31 de dezembro, que aprova o Orçamento Geral do Estado (OGE) para o ano de 2011, inclui um capítulo, o capítulo III, com a epígrafe "Disposições relativas a trabalhadores do sector público", analisando-se as socialmente mais significativas (i) numa redução direta da generalidade das prestações pecuniárias devida pelo desempenho dos cargos ou pelo exercício de atividades profissionais dos seus titulares ou pessoal identificado nas 21 alíneas do n. 9 do seu art. 19, ou (ii) em medidas que, direta ou indiretamente, afetam os seus rendimentos conexos com o desempenho dos cargos ou o exercício das atividades em causa (ver, em anexo, o art. 19 da Lei n. 55-a/2011).

No Acórdão n. 396/2011, proferido no Processo n. 72/11, o Tribunal Constitucional concluiu, com três votos de vencido, que as referidas normas não eram inconstitucionais. Eis a questão deste artigo, que reproduz uma grande parte de um trabalho anterior àquele acórdão publicado no n. 38 da revista Questões Laborais, com aditamento de uma ou outra consideração proferida numa comunicação feita numa iniciativa proferida pelo IDET (Instituto de Direito das Empresas e do Trabalho)1.

Para responder às questões de eventual inconstitucionalidade das normas em análise, o autor do trabalho atrás referido percorreu o itinerário seguinte2:

  1. Há alguma norma da Constituição que vede a redução do montante salarial devido aos trabalhadores?

  2. A matéria salarial é uma matéria constitucionalmente diferente?

  3. Da inexistência de norma constitucional que expressamente proíba a redução da retribuição resulta, necessariamente, que a Lei Fundamental não veda nem condiciona medidas de redução dos montantes salariais?

  4. Como pode descrever-se, em termos sucintos, a configuração jurídico-constitucional do salário?

  5. A norma que reduz o montante salarial a que um trabalhador tem direito por força de lei, da convenção coletiva ou do contrato é uma norma de restrição do direito (fundamental) ao salário?

  6. Sendo a norma em causa uma norma de restrição de um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, que normas e princípios constitucionais poderão sentir-se por ela interpelados3?

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2. Comecemos pelo óbvio

Não há qualquer norma da Constituição da República Portuguesa (CRP), que, em termos expressos, proíba a redução dos montantes salariais devidos aos trabalhadores pelo seu trabalho, independentemente da sua fonte de determinação: a lei, a convenção coletiva, o contrato, o regulamento interno ou mesmos os usos da profissão ou da empresa. À primeira vista não há, pois, obstáculo constitucional à decisão normativa de redução dos montantes nominais dos salários, já que, aparentemente, nenhuma norma da Lei Fundamental se lhe opõe pelo menos em termos ostensivos.

Da inexistência de norma da Lei Fundamental que vede expressamente a redução dos salários não se retira, porém, mais do que isso mesmo; não se retira, designadamente, que a Constituição não vede ou não condicione medidas de redução dos montantes salariais devidos pelo trabalho prestado no âmbito de um contrato de trabalho dependente ou mesmo independente. Não se esgotando a eventual inconstitucionalidade das normas em análise na resposta à questão da existência de norma constitucional expressa que proíba a sua redução, antes reclamando o percurso de um itinerário preciso ao longo do qual a medida em causa, à semelhança do que sucede com todas as medidas restritivas de direitos fundamentais, haverão de ser as normas em análise confrontadas com os sucessivos testes de constitucionalidade, dada a existência, como se verá, de várias outras normas e princípios que se sentem interpelados pelas medidas aqui analisadas.

Com efeito, a resposta a uma tal questão exige, desde logo, a análise do tratamento dispensado à matéria salarial, tornando-se necessário apurar se a mesma é ou não uma matéria constitucionalmente indiferente, o que suscita, antes de mais, a prévia análise (uma verdadeira petição de princípio) do tratamento que a Constituição dispensa à matéria salarial, parecendo avisado começar por enfrentar o problema seguinte, de acordo, aliás, com o itinerário acima traçado: a matéria salarial é uma matéria constitucionalmente indiferente?

3. Tratamento constitucional da matéria salarial

A resposta a esta questão é ainda mais óbvia do que a anterior. Com efeito, a matéria salarial não só não é indiferente à Constituição como é objeto de uma sua particular atenção, ou seja, a Constituição não só não mostra indiferença pela matéria salarial como por ela exprime uma inequívoca preocupação.

Na verdade, a Constituição (i) consagra o direito de todos os trabalhadores (...) à retribuição do trabalho (art. 59/1-a), incumbe o Estado de assegurar (...) [a] retribuição (...) a que os trabalhadores têm direito (art. 59/2-proémio) e

(III) de estabelecer e atualizar o salário mínimo nacional (art. 59/2-a), dispondo ainda que (iv) os salários gozam de garantias especiais, nos termos da lei (art. 59/3).

"[Esta] preocupação constitucional com a retribuição (...) compreende-se facilmente", como escreve Rui Medeiros4, que, logo a seguir, transcreve o seguinte passo do Acórdão 257/2008 do Tribunal Constitucional: "a retribuição da prestação laboral, quer na sua causa, quer na destinação típica, está intimamente ligada à pessoa do trabalhador. Ela é também (...) o único ou principal meio de subsistência do trabalhador que se encontra numa situação de dependência da retribuição auferida na execução do contrato para satisfazer as suas necessidades vivenciais. É esta dimensão pessoal e existencial que qualifica diferenciadamente os créditos laborais, justificando a tutela constitucional reforçada de que gozam, para além da conferida, em geral, às posições patrimoniais ativas". Em comentário à norma relativa às garantias especiais de que os salários gozam, considera aquele autor que a norma do art. 59/3 "é coerente com a importância reconhecida à retribuição" na alínea a do n. 1 do citado artigo e com a teorização dos deveres de proteção dos direitos fundamentais.

Trata-se, aliás, de uma questão a que a doutrina e a jurisprudência se têm mostrado particularmente sensíveis.

Numa sociedade, escreve J.-E. Ray, em que vários milhões de pessoas são estruturalmente offreurs de travail, isto é, demandeurs d’emploi, trabalhar é mais do que uma necessidade alimentar: é a possibilidade de existir socialmente, para um desempregado é a possibilidade de reencontrar a sua dignidade5.

Embora, no rigor dos princípios jurídicos, não seja inteiramente exato dizer-se, sublinha Lyon-Caen, que o crédito salarial tem um caráter, já que não nasce das necessidades do credor e dos recursos do devedor num círculo de parentesco ou de aliança, certo é que "o salário é utilizado pelo trabalhador para a sua própria subsistência", sendo "isso que explica que a lei o haja submetido a um regime jurídico que apresenta certas afinidades com o regime jurídico do direito a alimentos"6.

Mesmo quando se entenda, como bem salienta Lyon- -Caen, que não é um crédito de natureza alimentar, é manifesto o nexo entre o crédito salarial e as necessidades básicas do trabalhador e dos familiares a seu cargo7.

"A proteção especial de que beneficiam os créditos salariais advém da consideração de que a retribuição, para além de representar a contrapartida do trabalho por este realizado, constitui o suporte da sua existência e,

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bem assim, da subsistência dos que integram a respectiva família. Fala-se, para designar esta vertente da retribuição, como a dimensão social ou alimentar do salário."

Esta é uma característica que a jurisprudência, designadamente a do Tribunal Constitucional, tem salientado com muita frequência nos sucessivos casos sobre os quais tem sido chamada a pronunciar-se e de que o acórdão atrás citado é apenas um exemplo.

4. Caracterização constitucional do direito à retribuição

É esta função alimentar do salário que justifica, em boa medida, a especial proteção de que a ordem jurídica portuguesa8, à semelhança do que sucede com a generalidade das ordens jurídicas dos demais países europeus, dota os créditos salariais, uma proteção que se traduz num regime marcadamente distinto, em muitos aspectos, do regime jurídico dos créditos comuns, como mais à frente melhor se verá (cf. infra n. 9).

Tanto pelo que ficou muito resumidamente exposto, como pelas expressas referências que a Lei Fundamental lhe faz9, pensa-se ser pacífica a conclusão de que o direito à retribuição se pode caracterizar, do ponto de vista jurídico- -constitucional, através das notas seguintes, como de seguida melhor se desenvolverá:

  1. É um direito formal e materialmente fundamental (n. 5);

  2. É um direito fundamental de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias (n. 6);

  3. É um direito que, por expressa determinação constitucional, incumbe ao Estado assegurar (um direito cuja garantia constitui uma obrigação uma obrigação constitucional do estado) (n. 7);

  4. É, além disso, um direito que goza de garantias especiais por expressa determinação constitucional (n. 8);

  5. É um direito objeto de várias concretizações legislativas de proteção (n. 9).

5....

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